sexta-feira, 9 de outubro de 2009

Coração Iluminado e o Reino de Grotão


A primeira vez que o franzino João viu o mar, foi quando tinha nove anos de idade, o insólito nisso é que uma doença rara o fez perder totalmente a visão aos sete, ou seja, dois anos antes. João era muito pobre, morava no interior, e desde pequeno era um menino estudioso que carregava no coração uma curiosidade impávida. Tinha como sonho ser um grande almirante, adorava os livros que contavam as peripécias dos grandes navegadores de séculos passados.
Mesmo morando num longínquo e miserável casebre o pequeno e esforçado João planejava um futuro promitente. Seu primeiro dia de aula, aos seis anos foi uma de suas maiores emoções. Mapas colados em murais do modesto colégio, carteiras rabiscadas por outros alunos menos empolgados, professores com seus ares de sabedoria que despertavam no garoto uma inveja saudável e ingênua. Tudo era encantador frente aos olhos daquela criança.

Foi às vésperas de um inverno que uma moléstia começaria a mudar a doce vida do garoto. A doença que o acometeu era uma raríssima enfermidade de nome estranho. Foram dias, semanas e meses de cama tendo a criança aos poucos a perda de sua visão. Trágica sina fez com que a mãe de João, uma humilde viúva, saísse do interior e fosse para o distante litoral, pois lá, uma espécie de orfanato para deficientes poderia proporcionar uma vida mais digna ao pobre menino. Dona Maria, uma costureira de mãos firmes e pulmões cansados, sabia que sua própria vida não iria muito longe e fez com que o vigário, responsável daquela casa de caridade, prometesse os cuidados necessários com o menino, mesmo depois do inevitável.

João quando chegou ao velho edifício onde funcionava a casa para enfermos, sentiu o cheiro do mar. O cenário era um tétrico casarão de diversos quartos que servia como hospital, asilo e albergue. Nos fundos um penhasco revelava um mar agitado e cinzento. Uma paisagem sombria como um eterno inverno. Ao chegar João já tinha as vistas totalmente prejudicadas.

O menino apesar de curado nunca mais pode enxergar. Na eterna noite de seus olhos, seus sonhos, seus planos e seus desejos foram sucumbindo como marinheiros a deriva, afogando-se distantes do navio. Sua mãe, para animá-lo, lia histórias quando podia e o rapaz as ouvia com um evidente olhar vazio e sem graça.
Há no mundo maior injustiça que definir ou perceber um olhar em olhos que nada vêem?

O tempo tratou de escurecer ainda mais aquele maldito destino. Chegou o dia que nem sua mãe poderia mais mirar o horizonte da vida. Um colar de ossos foi a única herança material deixada pela velha mulher. O menino, arrasado e magoado com a vida, com a ajuda do vigário atirou aquele objeto no penhasco. Que as ondas agitadas e furiosas engolissem aquele colarzinho e que toda a sua dor morresse no fundo do mar.

Deus por muitas vezes, alivia certos infortúnios. Tempos depois um homem de nome estrangeiro apareceu por aqueles lados e resolveu passar um tempo naquele melancólico lugar. Certa vez ao encontrar o menino chorando amuado num canto, o homem, viajado e experiente, percebeu do que se tratava. Os pequenos olhos encharcados revelavam-se desvanecidos, fixos, inertes. Pareciam olhos de porcelana, o homem logo percebeu que eram faróis obsoletos. De maneira suave e ao mesmo tempo imponente, como lufada quente que conduz um veleiro a mercê de gigantes ondas de um oceano feroz, o estrangeiro foi aos poucos tomando confiança e alugando fragmentos de atenção do sofrido rapaz. Falou da própria vida, falou de suas viagens e sem dar a menor chance conquistou o espírito tristonho do novo amigo ao revelar seu passado de profundo conhecimento do mar. Era covardia aproximar-se de tão sonhadora criança e contar fantásticas historias que diziam respeito às marés, tempestades e correntes oceanicas. Foi nessa época que o menino pode dizer que finalmente havia visto o mar. As descrições do locutor eram magnificamente perfeitas de tal forma que com um pequeníssimo esforço poder-se-ia ouvir o som das ondas e até sentir a maresia. As palavras daquele senhor eram mais reveladoras do que fotos, eram mais tangíveis que as próprias rochas.

O mar era decifrado como um tremulante tecido ora verde ora anil, com fumegantes brumas, tão envolvente quanto o lençol que sua saudosa mãe estendia pelos varais e camas de casa nos dourados dias de sonhos vivos. A imensidão dos oceanos era associada ao infinito das saudades de esplendidas manhãs onde, brincando, o menino olhava as nuvens no céu carregado e imaginava fragatas cortando águas profundas e misteriosas.
Foi assim, num universo de lembranças e palavras poéticas, que o menino conseguiu vislumbrar o mar, conhecer navios, balançar em ondas gigantes, enfrentar ressacas assustadoras e até combater mitológicas criaturas marinhas. O homem havia conseguido fazê-lo sorrir e viver um pouco de novo.

Foram cerca de quatro anos de historias, conversas e amizade. Mas além desses contos de inestimável valor proporcionados pelo bom homem, outro valiosíssimo tesouro foi dado ao menino: A leitura para cegos. Foi graças a essa grandiosa herança deixada pelo inesquecível amigo que o menino pode crescer, contar historia e sentir-se mais humano.
O homem se foi. O menino já não é mais um menino. Ele adora ir até a praia e sentir a água nas pernas, ouvir o som do mar. Lembrar da mãe, lembrar do amigo e principalmente lembrar as palavras e com elas ver o mar, ver o céu, ver o horizonte e prazerosamente deixar pra trás os tempos de sofrimento, de tristeza e de trevas.

...

REINO DE GROTÃO

Certa vez no Reino Grotão um pequeno peixe chamado Noturno recebeu ordens para que imediatamente fosse ter com o Rei Boca Grande. Sua revolta com o mundo abissal já havia corrido todos os corais.

- Oh! Pequeno Noturno! Por que vives tão revoltado. Ouvi falar de pragas suas contra nosso mundo! Questionou o sábio rei.

- Vivemos na escuridão querido Rei. Nossos corações e olhos iluminados apenas nos fazem ver a um palmo de nossas antenas. Respondeu o pequeno Noturno.

- Somos abissais tola criatura. Somos os mais abençoados, pois temos corações iluminados. Você por acaso sabe o que é viver no claro e ser escuro dentro do seu ser? Isso sim seria a grande desgraça.

O Rei ainda continuou seu discurso:

- Não posso permitir que esse tipo de insatisfação tome corpo no nosso grande Reino de Grotão. Infelizmente fui obrigado a tomar uma atitude. Após conversar com o Mestre Cabeça de Vidro, resolvi que para paz de todos do nosso mundo o insatisfeito deverá ser expulso.

Um burburinho se instalou na pequena platéia de peixes esquisitos. O pequeno Noturno com a cabeça baixa foi subindo deixando para trás a escuridão. Acima um clarão assustador vinha tomando corpo. Um peixe abissal jamais poderia praguejar contra as trevas. Noturno sabia que o mundo lá de cima poderia matá-lo ou cegá-lo de vez, mas como um suicida resignado e sem olhar pra trás o peixinho seguiu firme rumo ao desconhecido.

Depois de muito nadar aconteceu algo inesperado. Um lindo colar de ossos veio vagarosamente surgindo. Ao tocar com sua anteninha no objeto, um tremor ocorreu e num inacreditável segundo o peixe transformou-se num homem. O homem na qual Noturno havia se transformado não era um indivíduo qualquer. Ele nascera com a sabedoria de todos os homens que um dia viveram sobre aquelas águas.

Noturno chegou à superfície. Escalou as pedras e avistou um interessante e antigo prédio destacado num imponente cenário de céu cor de chumbo.

O sábio , sentiu-se atraido pelo prédio e naquela direção rumou. Um homem sereno e maduro. Um homem de passado escuro e coração iluminado.

sexta-feira, 2 de outubro de 2009

Ilha de melancolia


Olhando o bolor no teto úmido do banheiro o sujeito nem ameaça fazer cara de espanto, reprovação ou transtorno. Ele é a indiferença personificada, a indiferença tomando banho. A mancha está ali, e isso é o suficiente. A água fumegante do chuveiro nada faz além de escorrer para o ralo. Assim como o infinito da vida e do universo o bolor parece ter estado ali por toda a eternidade, ele vem do invisível, surge como magia, dá a impressão que nunca irá embora, e o que parece claro e verdadeiro é que nunca mais o sol irá nascer de novo.

O banho é só mais um entediante procedimento de toda a porcaria vivida. O sujeito agora sentado na beira da cama olha a poeira instalada nos cantos. Sua boca aborta qualquer gemido, seu corpo ainda úmido está à mercê de qualquer tipo de ataque, mas com certeza nem o mais estúpido dos pernilongos teria qualquer prazer naquela ilha de tédio e melancolia. Ficaria ali por muito tempo. Horas, dias, anos? Que diferença faz? O sujeito sabe que aquilo é sua vida. O sujeito sabe que seu coração não passa de um medíocre músculo numa desinteressante contagem regressiva.

O buraco hoje parece mais escuro que das outras vezes. Mas ora bolas, como chamar de buraco um sentimento tão a flor da pele, um sentimento tão expectorado por aquele pobre diabo? Que buraco é esse, de onde se quisesse o sujeito veria o horizonte com seus barquinhos irritantes? Afundem barquinhos, afundem! O infeliz ainda raspa do fundo de sua alma um aborrecimento por causa da felicidade inaceitável e egoísta dos outros. Os motivos dele? Que importa os motivos dele? A tristeza dele é onipotente, ela não suporta qualquer gracinha, ela nem mesmo permite que se tente explicar ou entende-la. Ela está ali e pronto. O máximo que acontece é que às vezes o vivente não a enxerga por detrás de uma montanha de bobagens.

Nada naqueles tempos era diferente de outros tempos e nada pareceria fácil. Nem mesmo um confortável entorpecimento estaria em discussão. Era preciso apenas deixar o fogo queimar, ouvir cada crepitar no peito, remoer na mente os soldados inimigos, pensar na ordem dos fatores, fazer morar e despejar em cada milímetro cúbico de seus pulmões sua angustia, as causas e os vilões.

Essa procura insipiente por motivos causa ainda mais nojo àquele patético fantoche de humanidade. Causa-lhe enjôos lembrar outras pessoas, de outros momentos e de outros sentimentos que apenas alugaram sua alma e foram embora deixando toda a bagunça e baderna possível. A raiva ainda consegue dar o seu ar, tal qual um desagradável papagaio nos seus ombros.

Não haveria qualquer canto de pássaro, risinho de criança ou vitral ensolarado que por um segundo que fosse ameaçasse tão soturno e obscuro sofrer. A tristeza estava ali em pé, na soleira da porta do seu coração. Como enxaqueca, gota ou ressaca não existe cura imediata. Cabe-lhe vestir-se, botar sua fantasia, e tentar de forma vil, desprezar tudo aquilo e retomar seu viver. Cabe-lhe imaginar que o caruncho de seu interior possa ser por mais um tempo esquecido. Pelo menos até um novo sol, um novo nascer ou um próximo banho.