quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Pietá


Ela chorava copiosamente. A imagem era emblemática. No seu ventre uma semente, no seu colo uma vítima.

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Assistindo aquele teatro de vampiros, Juca sentia-se heróico. Nas imagens em preto e branco da miséria e violência dentre os barracos, ele lembrava com nitidez de sua infância de terror. Favela da Piedade era sua terra natal. Quanto tiroteio havia presenciado? Quantas perseguições? Quanta insanidade? Agora ali, como de tempos em tempos, naquele horário político tudo era recapitulado.

Juca lutou, Juca teve ajuda, Juca estudou e conseguiu sair de lá. Ele sabia que alguns colegas dele, nem com toda ajuda do mundo sairiam de lá, ele sabia que sem sorte não se atravessa nem a rua, mas ele atravessou. Não era nenhum rei, vivia com um salário baixo junto com a esposa (que também trabalhava) e o pequeno Bento. Conseguia com esforço pagar o pequeno apartamento longe de todo aquele passado recheado de sirenes, gritos e pistolas fumegantes.

Sentia-se herói porque saiu de lá ileso. Foi sorte e esforço que o salvou daquele mundo bizarro e injusto. Desligou a TV e foi até o quarto onde checou que o filho de sete anos dormia tranqüilo e sereno como água de poço. Respirou com certo alivio.

Sua paz foi interrompida pelo toque do telefone. Sua irmã de dezoito anos, ainda prisioneira daquele mundo escroto da favela, com voz rouca e chorosa contava sua desgraça.

Juca nunca entendeu o que Lisandra via naquele bipolar e desequilibrado vivente chamado Ismael, o Rapadura, um típico mau elemento. Vendia crack a mando de Pato, o traficante, além de ser um exímio arrombador de carros. Era jovem, porém tinha um semblante judiado, alternava momentos doces com instantes de grande brutalidade na companhia de Lisandra. Eram namorados desde pequenos.

Pois naquela ligação, a notícia parecia jogar no valo todos os planos que Juca tinha para a irmã. Juca havia ali decidido o que fazer no dia seguinte. Ela tinha que fazer, ela tinha que consertar aquele erro. Estava certo, na manhã seguinte iria até a Piedade conversaria com Lisandra, e redesenhariam o quadro. Ele estava convencido que a irmã precisava de um herói.

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- Não, eu não posso Juca! Dizia a moça com lágrimas que desenhavam um tortuoso caminho nas suas faces. E continuou:

- Mamãe, nunca permitiria isso.

- Mamãe não precisa nem ter esse desgosto de saber disso. Respondeu Juca, observando o filho que se distraia com um encardido jogo de cartas numa remendada mesa plástica.

Lisandra ainda disse:

- Mas Juca, isso é assassinato.

- Assassinato? Lisandra querida, eu sei que não é fácil, mas você precisa desse sacrifício se quiser retomar os trilhos de sua vida. Veja eu. Lutei, hoje estou num outro mundo, salvo dessa barbárie e dessa imundícia. Juca apontou as paredes de compensado do modesto barraco.

- Aqui na Piedade, a melhor opção é ir embora! Disse ainda Juca.

O menino então interveio:

- A vovó esta chegando! Pela pequena abertura do barraco, via-se a velha Neneca chegando com seu jeitinho pacifico e seus braços fortes.

- Meu netinho! Mas o que trouxe essa bela visita?

A velha mulher sorridente abraçou o garoto e beijou o estimado filho no rosto.

- E você, o que houve? Perguntou ao ver a filha com rosto marcado por lágrimas.

- Já sei. Juca veio novamente tentar te salvar de Piedade, mas Ismael é sua ancora né?

Não adianta Juca, essa vai morrer abraçada àquela coisa ruim.

Aproveitando a ignorância da mãe, Juca vestiu o contexto com se fosse uma bela carapuça:

- Pois é mãe. Por isso vim aqui pra dar uma volta com Lisandra lá no meu bairro. Vou mostrar pra ela que ela esta perdendo.

- Vai, vai. Mas deixa meu netinho aqui pra eu matar saudade dele.

Juca pegou Lisandra pelo braço e os dois saíram.

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A clinica era pequena, os olhares eram pesados como chumbo. Ninguém ali estava bem, todos de um jeito ou outro tinham suas almas nubladas. Quando a atendente chamou, Lisandra apenas mirou seus olhos inundados para o irmão.

Foi ali que o coração de Juca foi tocado. Ali na frente dele, não reconheceu mais a irmãzinha de outrora. Sentiu sua certeza voar como folhas secas frente a um tufão. Viu uma mulher com uma expressão horrorizada, viu uma jovem inocente com um olhar que temia uma espada que lhe penetrasse por dentre as costelas e lhe arrancasse as entranhas. Entendeu que ela agora era outra pessoa. Compreendeu que quando uma vida surge, outra, de certa forma, vai embora. Aprendeu que o dia do nascimento não é no aniversário e nem na concepção. O dia do nascimento é quando alguém se torna pai ou mãe e quando isso acontece nada mais será como antes. Não era mais Lisandra ali. Era sua mãe, era seu pai, era ele mesmo. Com os olhos já transbordados segurou firme a mão da irmã e pediu desculpas.

- Pensei em ser seu herói destruindo sua vida, perdoe-me!

Abraçou a moça e os dois saíram dali sem olhar para trás.

A atendente esboçou um pequeno sorriso e pensou:

- Quando eles desistem meu coração regenera um pouquinho.

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Já estavam perto de Piedade. Haviam combinado no caminho que logo que possível sairiam dali e de alguma forma criariam aquela criança com dignidade. Estavam, de certa maneira, até excitados com a idéia de contar a Neneca sobre o novo neto e a Bento sobre o primo.

Na entrada da ruela que daria no barraco de Lisandra, perceberam uma estranha movimentação. Sentia-se naquele tumulto, um clima soturno de agonia no ar. Juca parou o carro e os dois saíram correndo a pé em direção a pobre moradia. Afastavam quem tivesse no caminho: Curiosos, vizinhos, desocupados, desgraçados ou não.

Bem no meio daquilo que chamavam de casa, estava o corpo. A velha senhora chorando veio de encontro ao filho tentando fazer o impossível, tentando explicar o inexplicável.

- Foi aquele desgraçado, o Rapadura. Ele esteve aqui. Entrou atirando como se estivesse possuído.

Juca tinha a mãe lhe abraçando forte. Lisandra apavorada correu em direção do pobre e ensangüentado Bento.

Juca não sabia se a mãe estava lhe consolando ou queria ser consolada. Juca nem pensava direito. Na sua frente, nos braços de sua irmã, seu filho estava ferido mortalmente.

Ela chorava copiosamente. A imagem era emblemática. No seu ventre uma semente, no seu colo uma vítima.