terça-feira, 8 de novembro de 2011

Saudade de Laguna


A menina agitada, implora com o pai para brincar com ela. O homem sentado e petrificado como um Abraão Lincoln tem os olhos quase que estagnados na televisão. Depois de alguma insistência ela sai da sala, cabisbaixa e desanimada. Na TV o intervalo do jogo. Um domingo agradável lá fora, um entardecer típico de primavera. O homem levanta o corpo dormente, caminha até a sacada e escuta baixinho o choro de um bebê. Deve ser o vizinho. Pensa. O choro para. Respira fundo para curtir aquele típico silêncio dominical das ruas.

Percebe que esse pseudo-silêncio é quebrado agora por um ruído melódico. É algo com um tom familiar. Aguça o ouvido, mas ainda não consegue decifrar. Entra, coloca a TV no mute e volta para fora. Agora consegue ouvir melhor. Um floreio de violino, um pequeno dedilhado de violão e enfim o triunfal som de um acordeom. Entrou no ouvido, mas, fumegante, foi direto aquecer seu coração. Fechou os olhos e sentiu uma lufada de nostalgia no rosto. Puxou na memória o dia no calendário. Incrível. 10 de Novembro. Coincidência? Claro que não. Era um sinal. Um sinal de que estava fazendo a coisa errada.

Foi rápido até o quarto e disse para a filha.

- Arrume-se vamos sair.

- Aonde vamos papai?

- Você não queria brincar? Pois eu tenho uma “montanha mágica” pra te mostrar.

A menina animada foi procurar outra roupa com a ajuda da mãe. O homem foi até o sótão e vasculhou em caixas velhas. Fuçou dali, Fuçou daqui e finalmente encontrou. Acho que era essa. Pensou.

Nas mãos uma fita cassete toda amarelada. Pensou o quanto seria mais fácil se soubesse o nome daquela música. Pelo menos lembrava que era a primeira da fita.

A filha já lhe aguardava pronta.

- Por favor. Nós temos acolchoados em algum lugar? Perguntou à esposa.

- Acolchoado? Como assim?

- Deixa pra lá. Respondeu o homem reconhecendo que sua pergunta era um tanto quanto estranha.

Foi então até o quarto e pegou tudo que podia: Cobertor, sono-leve, colchas, travesseiros e almofadas.

A mulher atrás não podia deixar de perguntar;

- Que tolice é essa? Aonde vais com isso?

- Eu vou trazer tudo de volta. É só um empréstimo. A mulher muito mais pela curiosidade do que por qualquer outro motivo calou-se.

Ele levou tudo até a garagem, baixou os bancos traseiros do carro e foi jogando tudo que colheu naquele espaço. Teve que apelar com as almofadas da sala, os travesseiros da filha e até alguns bichos de pelúcia. Olhou para aquela “montanha” e pensou o quanto as coisas deveriam ser diferentes do que hoje sua memória lhe trazia. Deu um pequeno sorriso no íntimo por isso.

- Suba! Disse para a menina.

A menina de 5 anos desconcertada, não entendeu direito, ou pelo menos não acreditava no que ela poderia ter entendido.

- Vai menina suba! Não quer brincar? Sobe ai em cima da nossa “montanha”.

A menina num suspiro de felicidade e diversão, nem pensou de novo. Num segundo, estava jogada com os braços abertos em cima daquele monte de coisas fofas.

O Homem pegou um toca fita portátil à pilha entrou no carro, ligou o motor e olhou para a mulher que estava, ali fora, com outra criança no colo.

- Entra ai vai! Venham brincar também.

Sem ter nada a perder a mulher entrou no carona.

Em minutos estavam trafegando nas ruas de paralelepípedo que ligavam à cidade vizinha. O toca fita tocava alto o som daquele choro instrumental, mais precisamente a deliciosa melodia de Pedro Raymundo e sua gaita. A mesma canção que ele ouvirá momentos antes na sacada. A mesma música que seu pai ouvia muitas vezes no toca fitas do carro enquanto ele, garoto, vinha atrás deitado sobre uma montanha de colchões de chitão, sentindo aquele cheiro forte do tecido e olhando as luzes dos postes que passavam através da janela do carro.

Parecia um sonho. Um fragmento do tempo captado pela musica, o trepidar do carro nas curvas daquelas modestas ruas. A mulher ao lado apesar de não entender direito o que acontecia se divertia olhando a felicidade da menina deitada ali atrás, livre, solta e ao mesmo tempo tão segura e confortável.

Pela janela traseira do carro a menina olhava o céu já escuro e estrelado e as luzes dos postes que deixavam para trás um caminho. Um caminho sem volta e que com certeza jamais seria esquecido.

No peito do homem; Saudade do pai. No alto-falante; “Saudade de Laguna”.

terça-feira, 11 de outubro de 2011

Tony e Country


Parecia que todos no colégio só falavam no tal duelo que se travava nas ultimas semanas nas redes virtuais da internet. Até mesmo os professores mais chegados participavam nos intervalos, das rodas de discussão sobre as razões ou não dos popularíssimos Tony e Country. Os dois avatares, cada qual no seu jeito, pareciam ter conquistado cada sala, cada corredor, cada canto, cada coração e mente da pequena escola Joana de Gusmão. Rubinho, um mulatinho de jeito tímido e aparência franzina bem que tentava participar daqueles fóruns, mas sempre era sufocado ou ridicularizado pelos demais.

Alguns professores criticavam a voracidade que a internet e suas redes sociais invadiam o cotidiano normal e real dos alunos. Para eles, essas comunidades pariam uma frieza inaceitável nas relações e jamais poderiam substituir daquela forma tão abusada, a natureza humana nas convivências. Preocupavam-se com a possibilidade de que essa modernidade não fosse algo tão inofensivo quanto pregava outra corrente de docentes. Uma bandeira levantada por esse primeiro grupo trazia a questão da escrita, e a conhecida forma de se expressar no universo dos jovens internautas, onde o português era torturado, violentado e assassinado nas mais diversas e esdrúxulas formas de se escrever qualquer palavra.

O segundo grupo de professores mostrava-se mais tranqüilo e digeria toda aquela cena, apenas como mais um episódio de uma natural evolução social. Estes carregavam bem menos nas tintas quanto ao português e diziam que a questão do humanismo era algo complexo demais para ser controlado via limitações ao alcance das redes de relações virtuais. Para eles, essa luta era murro em ponta de faca.

Humanismos a parte, a verdade é que em se tratando do português ou da forma de se expressar, os embates de Tony e Country superavam isso. Tony com sua liberdade e vanguardismo latejante tinha um estilo todo peculiar. Ele não criava palavras novas ou bobas como geralmente se vê nesses universos net-literários. Sua dialética era popular sem ser pobre, sabia descrever suas idéias com uma habilidade ímpar onde qualquer leitor preguiçoso poderia ler longos textos sem sentir qualquer enfado. Seus textos geravam prazer na leitura de qualquer um, algo como um jardineiro que consegue fazer brotar um jasmim num terreno de pedregulhos. Country por sua vez era nada coloquial. Um verdadeiro aparelho de emissão de palavras e expressões exatas. Era incrível sua capacidade de escrever de forma corretíssima, quase matemática. Era como se o texto todo fosse uma só palavra e que uma vírgula ali modificada seria sentida a quilômetros de distância destruindo todo o sentido da coisa. Sem duvida Country era uma espécie de general, reacionário, conservador e líder de um pelotão fiel de letras, palavras e grafias.

Quantos momentos foram exaltados nesses encontros e discussões daqueles dois nicks no universo daqueles alunos. Quem não ficou de boca aberta com a visão de Religião de Tony, quase parecendo um anticristo e usando toda a lógica e ciência para derrubar muralhas de conservadorismo. Em contra partida, Country surgiu como um cavaleiro das cruzadas, armado até os dentes com argumentos sólidos de espiritualidade e da essência das mensagens bíblicas e sua verdadeira necessidade perante a sobrevivência ou viabilidade de um mundo civilizado.

Outra grande batalha foi o choque das idéias quanto ao Capitalismo de Tony contra o Socialismo de Country. O primeiro evocou como argumento a própria natureza humana no sentido de que não haveria Santo no mundo que pudesse brecar os limites do poder do capital. Country contemporizou mostrando que essa aparente solidez, do dito regime dominante, não passava de um tecido de bolhas, onde mais cedo ou mais tarde todas teriam murchado ou estourado. Seria apenas um momento e o Socialismo seria apenas um urso adormecido.

Então era assim que as conversas ou debates de Tony e Country vinham brotando diariamente na rede social e todos naquela cidade e até em outras seguiam os dois oráculos como se acompanhassem uma novela emocionante, tomando suas decisões, ora para um lado, ora para outro, ora para a dúvida. Nas pautas, os temas abordados sempre eram delicados e muitas vezes polêmicos: Aborto, Armas, Censura, Pena de Morte e muitos outros.

Naquela semana em especial o alvoroço era grande, pois os dois “gladiadores” teriam marcado definitivamente um encontro físico no pátio do colégio. As expectativas eram tão intensas que até mesmo as aulas foram pausadas minutos antes do horário estabelecido. Por isso o burburinho era fumegante e lá no meio daquelas panelas de conversa, o pequeno mulato Rubinho nunca tinha vez e nem mesmo era percebido. Ele pedia timidamente espaço e não conseguia participar de nenhuma roda. A verdade é que todos esperaram por cerca de 40 minutos e ninguém surgiu para assumir as famigeradas identidades.

Todos ficaram frustrados e dentre eles Rubinho é o que parecia mais triste. O mulatinho chegou em casa cabisbaixo e nem deu oi para a mãe. Subiu as escadas trancou-se no quarto e digitou no seu computador:

Country: Prezados colegas, hoje eu gostaria de falar sobre Bullying.

Em seguida abriu outra janela no seu monitor e escreveu:

Tony: Veja bem Country! A questão é: Onde nasce o Bullying? Será que o problema não é um pouco mais familiar do que escolar? Quem tem culpa? Os garotos gozadores ou o garoto alvo? Ou será que isso tem mais a ver com os mais velhos que convivem com essas pobres crianças?

quarta-feira, 24 de agosto de 2011

O Segredo


Douglas completará 11 anos de empresa na próxima terça feira. Ainda lembra com certa emoção do dia em que foi chamado no concurso público que prestou. Tinha ficado na octogésima oitava colocação. Muita gente entrou naquele ano.

Era mais de uma década e o maior fardo nesse tempo todo foi guardar o grande segredo da firma. Não era fácil chegar todos os dias em casa e nunca compartilhar com mulher e filhos um grande detalhe de seu cotidiano na corporação.

Um dos momentos mais dramáticos foi há alguns anos quando teve de ir à escola do filho para apresentar o que fazia da vida. Nas semanas antecedentes teve que praticamente aprender a arte da dramaturgia e interpretar um cidadão que trabalhava com recursos humanos ou capital intelectual, uma apresentação pra lá de genérica e prolixa. No final deu tudo certo, e todos acabaram convencidos, mesmo que pelo tédio, de que Douglas era um analista “sócio-econômico”.

Não dava pra negar que no decorrer do tempo Douglas foi se especializando nessa artimanha de esconder esse grande mistério e em certo momento ele até se sentia normal. Para combater as agudas crises de culpa ou os arrastados momentos de angustia, ele tinha criado pra si mesmo alguns disfarces elaborando um cronograma minucioso com todas as etapas possíveis. Aliás, era fantástico o que já existia, nesse sentido, naquele mundo corporativo. Era inacreditável que um universo de outros envolvidos já tinha tudo sob controle. O segredo, na verdade, nem era tão secreto assim. A confraria envolvida tinha uma representatividade absurda e em poucos anos seria mais adequado que aquilo pudesse ser chamado de Máfia.

Workshops, Benchmarking, Seminários, Multiplicadores, Facilitadores, uma série de desígnios picaretas que só serviam para dissimular o grande coelho escondido na cartola de cada cúmplice ou infeliz envolvido.

Era dureza para Douglas esconder de sua família, por tanto tempo, algo tão relevante, no entanto era exatamente para protegê-los que ele tinha de agir assim. Apavorava pensar no que poderia acontecer aos seus entes queridos caso o disfarce fosse revelado e a confraria descobrisse isso.

Douglas lembrava claramente do soturno momento em que um grupo de homens fortemente armados e vestidos com roupas camufladas invadiram sua baia e ordenaram que ele se juntasse a outros na sala de reuniões. Foi a revelação para os novos integrantes concursados. Eram cerca de duzentos novos empregados todos espalhados pela grande sala. Um grandalhão com bigode de general tomou a palavra e de forma seca e direta contou a todos o verdadeiro “serviço” a ser realizado. A explanação causou um burburinho logo contido pelas pancadas do sujeito com um grande cassetete na mesa.

- Acham ruim?! Querem sair?! Aviso a vocês que podem até sair, mas essa informação é altamente confidencial e deve morrer aqui dentro. Nós temos todas as informações sobre vocês: endereço, familiares etc.

Disse o “general” em tom ameaçador.

Sobre o objetivo de tal situação ele confidenciou que eram ordens políticas superiores e isso não se discutiria mais.

Agora prestes há completar uma década e um ano naquela instituição, Douglas resolvera fazer o que não agüentava mais esperar. Revelaria para sua mulher, tão grotesco segredo.

Aguardava a esposa com um fumegante cappuccino na sua frente e ela chegou pontualmente no horário combinado. Estava assustada pelo tom de voz de Douglas no telefonema de horas antes.

- O que foi querido? O que tem de tão importante pra me dizer? Ela foi logo perguntando.

- É sobre meu trabalho querida.

- O que houve?

- Eu preciso lhe dizer o que verdadeiramente eu tenho feito nessa última década.

- Não estou entendendo. Você não trabalha no RH, não analisa...

Ela foi logo interrompida pelas palavras e pelo olhar vazio do marido.

- Querida, eu na verdade não faço o que tenho dito que faço por todos esses anos.

O silêncio e o olhar aterrorizado dela pareciam autorizar que ele continuasse:

- Querida! .... Eu não faço .... nada!

terça-feira, 19 de julho de 2011

O Horror na Guerra


Hanna surgiu furtivamente pelo rombo da parede lateral do prédio em ruínas. Naquele momento ouvia-se só o som longínquo de uma sirene nas apertadas ruas e becos daquele bairro polonês. Os alemães ainda vasculhavam o que havia sobrado do verdadeiro arrastão de horror dentre os civis. Hanna certificava-se de que nenhum deles estava por ali. Dobrou o bilhete encardido e enfiou nos bolsos do casaco surrado. A madrugada estava gelada, e seus passos ecoavam a cada corridinha nervosa a procura de sombra para se esconder. No pensamento, numa fração, entendeu o viver de uma barata, correndo e se enfiando nos cantos com medo das botas nazistas.

Voltou a concentrar-se na missão. Apesar de saber de cor o endereço, volta e meia checava o bilhete com a informação. Valioso objetivo, ela tinha de ter o produto nas mãos.

Dali já avistava o prédio escolar de esquina, bem danificado por algum canhão do Fuhrer. Precisou ficar agachada na sombra, por pelo menos dez minutos, pois uma dupla de “capacetes de penico” passou conversando. O cheiro de urina daquele canto era tão forte que seus olhos ardiam.

Correu até o colégio destruído e atabalhoadamente jogou-se por sobre um pedaço de muro caindo muito perto de dois corpos mortos. Percebeu que se tratava de duas crianças. Segurou a revolta no peito junto com a vontade de vomitar.

Um avião passou voando baixo e o som deu-lhe um susto. No entanto sabia que nunca alguém enxergaria um inseto numa distância daquelas. Sim, um inseto, definitivamente sentia-se como um inseto.

- Ah se pelo menos eu tivesse asas como um pernilongo. Pensou.

Depois de mais algumas manobras dentre entulhos e corpos, avistou a pequena capela logo após o terreno do cemitério. Apesar das paredes tomadas por fuligem a pequena casa de orações estava de pé. Conforme instruído encontrou o esconderijo nos fundos, um buraco coberto por um pedaço de madeira. Deu duas batidinhas e sussurrou.

- Sou eu! Hanna! Wander que me mandou para pegar o Funcho!

Num minuto a madeira foi mexida por dentro e alguém apenas empurrou para fora um pacotinho de papel pardo do tamanho de um maço de cigarros.

Hanna com todo cuidado colocou o embrulho no bolso e começou seu retorno arrastando-se até o portão do cemitério adjacente, onde teve de pausar e fingir-se de morta, pois um pequeno pelotão e uma moto transitavam ali perto. Depois de fingir-se de morta pertinho da casa dos mortos e vendo que os nazistas haviam se distanciado resolveu se nomear zumbi e saiu numa pequena disparada de volta ao seu lar de escombros. Alguém dentre os alemães percebeu e logo tiros e gritos ecoaram na madrugada escura.

Ofegante, ela conseguiu camuflar-se num monte de lixo de fedor fumegante. O pior do momento já tinha passado, graças a Deus não havia sido ferida.

Finalmente depois da jornada de inseto conseguiu retornar ao seu cantinho de sobrevivência. Ali sua velha mãe esperava. No outro canto estava Wander e sua perna mutilada.

- Graças a Deus! Disse a velha com uma criança que chorava desesperadamente no colo.

- Trouxe o Funcho? Perguntou Wander.

Após resposta positiva, Wander lhe entregou uma caneca de lata com um dedo de água. Ali socaram o funcho e fizeram o que parecia ser um projeto de chá. Deram a criança. Em dois minutos o choro parou. Olharam-se incrédulos. Teria sido mesmo o efeito do chá? Será que as cólicas teriam sumido exatamente naquele momento por coincidência? Nada disso importava. Nem mesmo faziam questão de saber. Apenas deitaram-se todos agrupados e em silêncio.

De repente, Hanna ouve um ruído! Seu coração está disparado. Olha o bebê e suspira aliviada. Ele esta dormindo serenamente. O barulho, provavelmente, era apenas alguma metralhadora matando alguém na vizinhança.

quarta-feira, 18 de maio de 2011

Homens Trabalhando


De manhã na rua...

Chegamos cedinho no local, daria para ouvir o canto de um galo, se ali nas redondezas houvesse algum galo. Respiramos fundo aquele delicioso ar matinal. O céu rosado prometia um maravilhoso dia de sol. Na carroceria pegamos nosso material, ainda tive de voltar para pegar um cigarro no porta luva. No painel o retrato de meu filho parecia dizer: - Tenha um bom dia papai!Destrinchamos as amarras e levantamos a lona protetora. Lá estavam as ferramentas, os explosivos ao lado de nossas marmitas e lancheiras.

Ataulfo e eu pegamos com cuidado o material e levamos até a entrada do prédio. Ramirez, um pouco atrás, juntou as picaretas e os sacos de lixo. Observamos mais uma vez o entorno e curtimos o silêncio daqueles que ainda dormiam. Com certeza tínhamos inveja nos nossos corações.

Ramirez palpitou na distribuição das bananas enroladas em papel encerado. Coçando a cabeça Ataulfo achava melhor deixar tudo mais embolado. Ficamos naquela duvida por alguns minutos até que resolvemos por seguir nosso projeto inicial: Colocaríamos um pouco acumulado aqui e outro ali perto da parede.

O celular de Ataulfo tocou antes de iniciarmos. Era a patroa dele.

- Ok querida, eu vou passar no açougue sim. Eu não me esqueci do churrasco e do batizado não.

Ela disse mais algumas coisas e depois dos beijos ele desligou fazendo cara de pouco para mim e para o índio Ramirez.

O sol começava a surgir de verdade por detrás das edificações a leste. O calor do momento me fez retirar minha surrada blusa de mangas compridas.

Depois de locados, os preciosos cartuchos, cuidadosamente afastamos o dispositivo de ignição que estava preso por um fio. Ficamos cerca de 30 metros do local, atrás da nossa camionete.

Trocamos rápidos olhares e detonamos.

O som foi ensurdecedor. Corremos para ver por detrás da fumegante e fétida nuvem ocasionada. O rombo não tinha sido suficiente. Com as picaretas e machado seguimos nossa labuta. Ataulfo chegou rapidamente com os sacos.

....

A noite na TV:

- Um bando de vagabundos destruiu um caixa eletrônico com explosivos e marretadas. O Banco informou que cerca de R$ 60 mil reais foi roubado...

quarta-feira, 27 de abril de 2011

O Crime das amenidades


Entrou no ônibus e sentiu uma gotinha de felicidade ao ver que ainda havia lugar para sentar, pensou pela milésima vez o quanto de tempo na sua vida passou dentro de “latões” como aquele. Quanta gente falando sem parar desde as sete e meia da manhã. Refletiu: Uma das coisas que sua vida medíocre de passageiro lhe ensinou é que as palavras são extremamente inócuas naquele universo.

Lugar na janela, que maravilha. Poderia olhar ali fora e ver tudo, menos a realidade.

O zum, zum, zum, dos idiotas estava diluindo-se no seu pensamento. Ele não podia parar para pensar, pois se parasse o julgamento começaria.

Tarde demais.

- Meritíssimo! O réu esta sendo julgado por sua insistência com amenidades.

Um Oooh!! Foi ouvido, vindo do pequeno público.

- Amenidades! Que coisa! Cochichavam uns estúpidos lá no cantinho do tribunal.

O Juiz com desdém e um sorrisinho escroto na cara apenas olha com repugnância o tolo pensador de amenidades.

O Promotor continua com a voz alta.

- Todos seus irmãos agora estão curados da doença das amenidades. E esse infeliz continua a insistir com essa maldição.

- Ele é um completo idiota! Vociferou um homem de terno e notebook no colo.

- Um palhaço! Outro brandiu debaixo de seu cabelo espetado e besuntado de gel.

O réu apenas olhou de canto de olho e lembrou que detesta Max Gehringer. Até seu ódio é ameno. Odiar Max Gehringer é uma amenidade não?

O juiz bateu o martelo na mesa e exigiu ordem.

- Ordem! Ordem no tribunal. Chamem o advogado de defesa.

Lá no canto esquerdo levantou-se a figura patética do advogado de defesa. Um sujeito que traja uma vagabunda camisa pólo por fora da calça. Na cabeça um acetinado chapéu de bobo da corte.

- Meritíssimo! Quero dizer que a acusação ao réu é infundada, uma vez que o objeto da acusação está sendo distorcido.

O Juiz fez cara de pouco de com as mãos fez sinal para o bobalhão prosseguir.

O Advogadinho então perguntou a todos os presentes:

- O que vocês querem desse pobre looser? Será que não percebem que as amenidades são sua salvação? Vocês cobram uma postura estupidamente séria e respeitável com que intenção? Meu cliente, não é um desigual. Ele apenas optou em ser ameno. Ele é pai de família. Ele sabe que suas amenidades farão seus filhos passarem por ele, como ele passa por catracas de ônibus. Ele sabe do passado inútil, do presente enganoso e do futuro negro que suas amenidades lhe engendrarão. Não existe maior pena do que a vida que esse sujeitinho medíocre leva, e pior ainda o amanhã que lhe espera.

Ele quer assim? Então que seja assim. Ele vai sentir a merda toda na própria velhice, se é que já não esta vivendo esse flagelo!

O advogado de defesa tinha pequenas fagulhas nos olhos ao dizer isso. Parecia um diabo cobrando a divida de um desalmado.

- Belo advogado de defesa! Pensou ironicamente o réu. O filho da puta também esta tripudiando sobre meu patético crime.

- Meritíssimo! Continuou o defensor após pigarrear. Peço que esse processo seja arquivado e que o réu seja liberado para sofrer sozinho com seus pensamentos.

O promotor levantou-se com os dedinhos finos ainda tocando sua bancada, e depois de olhadelinhas de um canto ao outro, falou com voz aguda, quase como um guincho:

- O crime não está apenas nas amenidades! O crime maior é outro.

O auditório ficou em silêncio tomado por uma fumegante e envolvente nuvem de curiosidade.

- Caros presentes. Esse infeliz tem sim de sofrer o castigo gelado da ignorância. Ele deve ser sim tratado como um fracassado, um sem assunto e um limitado. Ele deve sorver todo nosso desprezo disfarçado. Porque meus senhores e minhas senhoras do júri. Esse filho de uma égua comete o crime mais horrendo na nossa concepção.

- Esse imbecil, não tem, não ambiciona e não consegue ganhar...

... Dinheiro!

Um silêncio sepulcral tomou conta do cenário. Os cenhos de todos eram carregados e pesados como chumbo.

O réu, sem dúvida, teria pena máxima.

E o ônibus chegou ao terminal no mesmo horário de sempre.

sexta-feira, 1 de abril de 2011

O João de Barro e as Águias de Pedra


Seus olhos encheram-se de água ao parar em frente ao colégio municipal com o filho segurando suas mãos. Aquela fachada imponente com frontão faraônico e seus numerais romanos exatamente como era na sua infância, um paradoxal sonho feito de pedra sobre pedra.

A porta enorme de madeira nobre lembrava a entrada de um castelo. Os grandes vitrais sobre majestosas janelas, as cimalhas adornadas e nos cantos as emblemáticas águias de pedra que tanto impressionavam em outros tempos. Virou-se para seu menino e tentou sentir a emoção por outros olhos. Lógico que agora, no alto de seus 44 anos, o prédio tinha sim, perdido um pouco da sua grandiosidade. Porém isso não evitou o turbilhão de lembranças.

Quantas vezes, ao passar por ali perto, quando ainda era chamado de Joãozinho, puxando o carrinho apinhado de papelão com o saudoso pai, admirava as crianças sorridentes chegando com suas camisas brancas como nuvens em contraste com calças azuis de tergal. Encantava-se com aqueles belíssimos brasões costurados nos bolsos das camisas. Imaginava que o pai ficava constrangido e disfarçava com olhadelas todo o movimento, os sapatos engraxados, as pastas e mochilas que exalavam cheiro de coisa nova.

Ele, pequeno feito um fantoche, de pés no chão, ajudando o velho na seleção do lixo, apenas tinha o direito de sonhar e nunca ousava imaginar que alguém de sua família conseguisse ali tocar os pés. Seu pai precisava de seus serviços para colher papelão pelo bairro. Mandar o garoto para os cadernos e livros era luxo demais para aquele velho mulato, o pouco que conseguiam colher para vender era suficiente apenas para o feijão, o pão e raras vezes a carne no açougue da esquina.

Tanto tempo passou. O velho tomou o caminho inexorável de todas as vidas. Ele cresceu, largou os papelões e conseguiu com esforço e muita dor aprender o ofício da construção. Aos dezessete anos era um atencioso ajudante de pedreiro, com trocados e sobras juntava material para construir sua própria casa, moradia encravada no alto do morro, feita com suor e carinho junto com a jovem Dinara, a mulatinha que lhe enfeitiçou. Tornou-se um pedreiro experiente, que lhe rendeu o apelido de João de Barro. Ensinava o filho os macetes da vida, mas não da profissão. Queria que o filho tivesse um futuro melhor, sabia que seu sonho talvez virasse verdade conforme conseguisse mais serviços.

Agora, tanta emoção naquele momento presente. O filho ali do lado, segurando suas mãos com força, o rostinho apavorado. Fechou os olhos e lembrou de Dinara. Não pode conter mais uma onda de lágrima. Alguém pede licença e passa com outra criança desfalecida no colo. O barulho é confuso, pessoas chorando, pessoas resignadas, pessoas sem expressão.

Ele e o menino só tinham a roupa do corpo, estavam enlameados e fétidos. No céu uma pequena trégua das nuvens e do fumegante mormaço. Num megafone um outro cidadão dizia para que o pessoal tentasse se instalar da melhor maneira possível nos salões da escola e que mantimentos deveriam chegar em breve.

Olhou aquele pequeno rasgo de sol, pensou mais uma vez na mulher e na casa descendo o morro na avalanche de lama e desespero da noite anterior. Olhou de novo para as estatuas das aves de rapina. Queria ter sido como aquelas águias de pedra, mas a verdade é que nunca passou de um João de Barro.

segunda-feira, 21 de março de 2011

Boa Notícia



Segue EMAIL que recebi hoje do SINERGIA - Sindicato dos Eletricitarios de Florianopolis

Estava sendo aguardada com muita expectativa pelos participantes a relação dos trabalhos selecionados no 7o Concurso Conto e Poesia do Sinergia. Realizado em nível estadual, há 20 anos, o concurso tem se constituído como uma das mais importantes iniciativas na área em Santa Catarina.

Com a certeza de estar dando sua contribuição à produção cultural brasileira, o Sinergia busca com esse concurso literário cumprir um importante papel de propiciar espaços que contribuam para o exercício crítico e criativo dos trabalhadores.

Veja abaixo a relação dos trabalhos classificados e respectivos autores. Fizeram parte da comissão selecionadora de Conto: Dennis Radünz, Maria Tereza Queiroz Piacentini e Olsen Jr. e de Poesia: Fábio Brüggemann, Fê Luz e Alai Garcia Diniz.

Os 45 trabalhos selecionados serão reunidos em antologia que será lançada no segundo semestre de 2011, em Florianópolis.

O Sinergia agradece a participação de cada um e parabeniza os selecionados.

Maiores informações com o diretor de cultura do Sinergia Sigval Schaitel pelos telefones 48 8829-5929 / 48 3879-3011 ou pelo e-mail sinergia@sinergia.org.br.

CONTO
A chegada do “alemão” .......................................Sérgio Roberto Gouveia
A espera ...............................................................Luiz Carlos Borba Garcia
Galinha dos ovos de ouro ....................................José Paulino Junior
Habla! Parla! Speak! Fala! ...................................Mariana Avallone Merigo
Miolo (Cânticos para ninar pirados e piradas) .....Gilberto Pinto da Motta
Não se pode falar das coisas, mas elas existem ....Luiz Henrique De Nadal
Nobres deputados ...............................................Nelson Blank
O Ladrão de grama ...............................................Bárbara Raphael Baptista Pereira
Os Tolos dos Tolos ................................................Vitor Pacheco Júnior
Percival ................................................................Alberto Marcio Albano
Ritual de alumbramento .....................................Suyan de Oliveira de Melo
Sobrevida ............................................................Anacreonte Fonjic
Sorriso de Antonio ..............................................Stefano Roberto Moysés Colucci
Velhos corações imaturos .................................. Evandro Duarte
Viver é perciso ...................................................Rafael Reginato Moura

POESIA
A Mosca O livreiro A Lâmpada ............Maria Selenir dos Santos
As letras que trocavam o menino (dislexia) ....Marco Antonio Stello
Balada on the Road ..............................Raquel Wandelli
Barranco ............................................Leandro Richard da Silva
Cachecol ............................................Ivone Daura da Silva
Camarotes e parapeitos ......................Daniela Bunn
Canção do Mar de São Miguel ..............Júlio César Ramos
Contingente ........................................Jadna Pizzolotto
Corações ao alto ................................Marcio Dison
Cronos indesejado ..............................Silvério Ribeiro da Costa
Dente por dente ..................................Vanildo Machado
Divagar... ...........................................Adriana da Silva Bunn
Endereço ...........................................Vanildo Machado
Epopéia poética .................................Daniele Souza Freitas
Esquecer ............................................Jociclen Regina Fischer
Essa gente .........................................Suyan de Oliveira de Melo
Estações ............................................Conceição Aparecida Pereira Debarba
Estrelas ..............................................Suzana Mafra
Eu e ela ..............................................Aldo Guido Votto
Fissura por mensura ...........................Bárbara Raphael Baptista Pereira
Florbela não Espanca ...........................André Berté
Monange ...............................................Karine Santos
Natureza ..............................................Daniel Passos
Pequeno reflexo ...................................Paulo Rutigliani Berri
Poema Práxis ........................................Otávio Marhofer Dutra
Pornaso ...............................................José Luiz Amorim
Soldado sem sentido .............................Evandro Duarte
Tempo ..................................................Aldo Guido Votto
Transitivo .............................................Jairo Ferreira Machado
Três pedaços ........................................Leandro Richard da Silva


Sinergia: 20 anos de ação cultural.

terça-feira, 15 de março de 2011

O Milagre


Sua alma estava seca, tanta lágrima havia corrido em sua face que agora o que existia era uma sensação de vapor, uma espécie de fumegante névoa de dor e secura nos cílios. As remelas nos olhos inchados pareciam catarata que lhe escurecia a vista e obstruía a triste imagem do filho ali deitado. A cabeça pendia sobre ombros desumanamente caídos. Na mesa central o pequeno e fúnebre caixão. Os pensamentos já estavam desconexos, já não existia mais perguntas a serem clamadas, já não existia mais lógica nenhuma, nem mesmo nos sentimentos e no pesar dos outros.
Todos os abraços e mãos as costas eram como toques fantasmagóricos, sem sentido algum, apenas contato frio e inútil. Uma tontura insistia em ir e vir, obrigando seu corpo desgraçado a ficar sentado numa cadeira mirando o chão. Com a cabeça baixa, como não poderia deixar de ser, observou pendurado no próprio pescoço seu crucifixo. Pensou na própria fé.
Onde está você? Pensou. Onde está você agora? Insistiu no pensamento. A pequena cruz com o pequeno Cristo balançava devagar e hipnótica.
Num ato desesperado e absoluto abriu com firmeza os olhos e deixou pingar uma ultima e grossa lágrima no chão. Fixou firme o olhar no salvador e fez uma derradeira oração em pensamento:
- Por tudo de mais sagrado, por tudo que eu possa dar e tudo que eu possa querer. Ponha-me nessa cruz, me entregue essa sua dor, coroe-me com esses espinhos, açoite-me com mil chicotes, atravessa-me com cravos e rasgue-me com uma lança. Mas meu Senhor, meu ultimo refugio e meu oásis, pelo amor de seu Pai e pelo amor por minha criança, que agora está ali naquela mesa. Permita-me a graça de um milagre, ressuscite minha Fé e minha criança, ou ignore minha pobre alma, mas faça pela criança. Jogue-me no inferno se preciso e lá lhe serei grato. Qualquer coisa, qualquer modo, qualquer preço, mas salve ela do mundo dos mortos, traga-lhe de volta para os demais, traga-lhe de volta para viver um tempo digno.
Como que por loucura ele sentiu um sussurro nos ouvidos, quase um zumbido:
- Sem Fé, não há milagres, sem Fé não há milagres.
Sentiu um tremor na alma, pois aquilo pareceu uma resposta, mesmo que talvez fosse apenas um devaneio. Apegou-se aquilo como uma semente, uma fagulha de chance. Foi naquela fração que lhe veio a solução. Caiu de joelhos e vociferou o resto de sua oração:
- Um SONHO, isso! Faça disso tudo um sonho! Um pesadelo que estou tendo. Se minha fé não alimenta um milagre, então faça disso tudo um sonho, faça disso tudo um maldito sonho! Um homem sem fé não pode ter milagres, mas pelo menos pode sonhar. Meu pequeno e sofredor Cristo, minha vida poderá até virar um pesadelo depois, mas nesse momento, diga-me que isso não passa de um sonho, por favor.
Um barulhinho na mesa fez o homem levantar a cabeça e os demais voltar-se para o caixão. A pequena criança levantou primeiramente os braços e em seguida abriu os olhinhos e dai levantou o corpo. Um burburinho se fez. Vozes exaltadas, choro, sorrisos.
- Um Milagre. Alguém disse mais alto.
O pai levantou da cadeira e abraçou a criança aos prantos. Era um milagre. E ele começou a gritar:
- Desse-me um milagre, mesmo sem Fé! Desse-me um milagre mesmo sem Fé!
A felicidade daquele instante era algo fora do comum, algo como um delírio, algo como se ele estivesse...





...Sonhando.

...

Quando abriu os olhos, estava no chão sendo acudido pelos parentes e amigos.
- Você desmaiou e deve ter tido algum sonho. Disse-lhe o primo.

Todos ainda estavam por ali. Todos de preto e tristes e no pequeno caixão ainda estava inerte a dor da realidade.

Sem Fé não há milagres, lembrou o infeliz ali deitado no colo do primo. No entanto lá dentro de seu coração uma minúscula chama lhe aqueceu. Talvez o sonho não tivesse acabado e esse pensamento, essa chama, talvez fosse: FÉ.

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

Platônico




Essa brisa matutina trouxe você às minhas lembranças. Sua sombra se aproximando, seu perfume neutro, seu vestido florido e suas coloridas presilhas de cabelo. Ah, Minha baixinha, minha menina brincalhona que transformava aquelas manhãs em deleite. Gostaria de poder lhe escrever, mas não posso. Tanto tempo se passou e meu sentimento platônico e secreto ainda sobrevive agonizante, apesar desses cruéis invernos e outonos.
O que lhe escreveria se pudesse? Diria que tenho saudades de você me abraçando com seus braços brancos e finos, e que volta e meia surpreendo-me sonhando com você deitada, com a cabeça no meu colo e olhando pra mim e para o céu. Era nessas horas que me deliciava com a cor de seus olhos. Olhos redondos e violeta que refletiam as flores que eu lhe oferecia.
Desde muito pequena trazias seus segredos e até choravas sob minha proteção. Tenho ainda gravado no meu coração seu nomezinho.
Tento agora imaginá-la uma respeitavel mulher. Que linda mulher não deves ter se transformado. Será que ainda lembra-se de mim? Que bobagem, imagine se um insignificante como eu povoaria de alguma forma suas lembranças.
Tenho noção que não passei de um amigo de ocasião. Ajudava-lhe em suas lições da escola acompanhando-lhe em cada pagina cada parágrafo e cada linha de suas leituras matinais.
Lembro certa vez que você estava vendo um livro de recortes e para chamar sua atenção lhe joguei uma pétala de flor. Seu sorriso, como resposta, foi mais radiante que o próprio sol. Aquele sorriso alimentou-me por dias. Guardei minha emoção a sete chaves no fundo de meu coração, junto com seu nome. Daí você largou seu livro e veio para meus braços e balancei você no ar como se fosse uma folhinha. Você sorriu, você gargalhou, mas entendeu apenas como diversão, nunca enxergou minha paixão invejosa, nunca percebeu minha agonia, nunca compreendeu minha situação.
Eu sempre lhe esperava no mesmo lugar a cada inicio de verão. Não pense que era fácil quando o frio chegava e você se despedia. Minha serenidade era só fantasia, era máscara, era disfarce. Logo que você sumia de minha vista, eu caia em desgraça e chorava muito.
Sei que só me tinhas como um figurante, um objeto, uma sombra. Mas fique sabendo que fui um miserável apaixonado pela sua liberdade, suas danças e suas brincadeiras saltitantes. Tinha ciúmes do mundo que existia sob seus pés e raiva pela minha estagnação. Sempre lhe respeitei e sempre lhe invejei. Sonhava viajar com você pelo mundo, ter conhecido outros lugares, outros climas, outras paisagens.
Já se foram muitos verões que você nem apareceu. Estou velho, nem sei o quanto ainda vou durar. Tenho ciência de que você se foi pra sempre. Deve ter encontrado um companheiro de verdade, alguém que lhe corresponda, alguém merecedor, alguém que lhe acompanhe. Fico feliz com sua felicidade, mas entenda que desde aquele último verão, eu nunca mais fui o mesmo. Sinto-me seco, meus braços estão magros, meus pés doloridos. Não sou nem sombra do que eu já fui.
Às vezes o vento de alguma forma me traz você de volta, pois lembra seu peso leve nos meus braços. Mas é só o vento, é só uma fumegante presença sua e nada mais.
Tenho saudades minha amiga, muita saudade.


...ANOS DEPOIS


A mulher chega de mansinho no varandão. Ao seu lado o menino curioso acostumado com a cidade, vê novidade em todos os cantos daquele velho sítio.

- Mamãe! Olha só que legal isso.

- É um fogão a lenha, querido.

Ela caminha um pouco mais e olha com nostalgia cada cantinho daquele casarão.

Na sua cabeça a lembrança dos verões e dos avôs.

- Quando tinha sua idade eu sempre vinha passar o verão aqui nessa casa.
Disse para o filho que continuava afoito com todo aquele cenário.

- Veja o quintal aqui atrás. Gritou a irmã que também acompanhava a mulher e o menino.

- Que legal titia! Tem bastante espaço. Respondeu o menino.

A mulher olha pela porta dos fundos e sente algo diferente.

- Realmente, aqui parece ter bem mais espaço do que quando éramos meninas.

A irmã responde:

- É o Pé de Jacarandá que derrubaram faz alguns anos. Lembra dele?

A mulher para um pouco e sente o coração balançar.

O Pé de Jacarandá trouxe-lhe um turbilhão de boas lembranças: Aquela sombra, o balanço nos galhos, as suas flores violetas. Quantos abraços deu naquela velha arvore.
Lembrou do dia que desenhou um coração no tronco do velho Jacarandá e escreveu seu nome.

Seus olhos ficaram cheios de água e sentiu-se como uma menina boba.

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

A Casa do Elói



Tempos Atuais – Cena 1

Joca abre os olhos e não consegue definir se acha o barulho do seu despertador mais irritante ou escroto, é uma duvida que cotidianamente desperta na sua cabeça sonolenta. A rotina é tão dura e fria quanto o chão do banheiro que em menos de dois minutos ele já está pisando. O chuveiro fraco feito bica apenas serve como o primeiro chicote do dia. O sujeito não esboça nada, só faz o de sempre: Banho, toalha, roupa, café com pão dormido. Nos goles do café tenta ser um pouquinho poético e resmunga baixinho que até o pão dorme e ele não. É muito cedo e quando sai para a rua sente por alguns minutos o frescor matinal. O sol, no entanto não demora a surgir, todo caxias, pra não deixa-lo esquecer que sua vida é um inferno.

Ele trabalha num galpão para estoques, carrega pacotes o dia todo e fica conferindo e carimbando algumas notas. Trabalho digno de um condenado é o que sempre pensa. Seus amigos do trampo riem de seu jeito resignado que não se anima pra nada, na verdade ele é um cara quieto, muito misterioso e poucos colegas do galpão já conseguiram ver o branco de seus olhos.

O homem parece que não tem vida social, nunca fala para os amigos de nada de sua família, nada de seu bairro, nada de seu time de futebol... Se é que ele tem algum time. Ele mesmo diz, quando perguntam, que na verdade ele não se lembra de nada que não seja trabalhar. Pra ele aquele cotidiano é tão desgastante que virou eternidade na sua mente. Ele só se vê acordando para ir trabalhar e nada mais acontece na sua vida ingrata.

As horas passam como as rochas andam, o dia evolui como um cortejo de lesmas. A vida não passa para Joca, para ele a vida é como um retrato, um retrato desbotado e sem foco, de alguém que sofre de feiúra aguda.

Porém naquele dia, algo foi diferente. No ponto de ônibus um mendigo entregou-lhe misteriosamente um bilhete. No bilhete escrito em letras bem delineadas: Casa do Elói esteja lá amanhã as 18:00 horas.

Casa do Elói? Mas que diabos? Pensou o infeliz. O que esse velho maltrapilho sabe sobre a Casa do Elói? O motivo da surpresa era simples, a tal casa citada era um velhíssimo sobrado abandonado onde na infância Joca brincava nos arredores, imaginando mil e um mistérios. Ele nem lembrava porque chamavam de Casa do Elói e nem mesmo nunca soube quem tivesse sido esse tal de Elói.

O dia seguinte prometia, pois Joca acordaria antes do despertador. Teria de sair mais cedo do trabalho, para ir de encontro ao velho e misterioso sobrado cor de barro, que há tanto tempo ele não via.

....

Tempos atuais – Cena 2
Zequinha chegava do trabalho todos os dias imitando passarinhos com seus assovios. Os obrigatórios cochilos no ônibus, na volta do serviço, serviam como um elixir milagroso. Renovava sua alma e transformavam aquele homem num poço de serenidade e alegria.

Beijo na mulher, os pães quentinhos o café fumegante, um ritual sagrado para Zequinha que sempre tinha a mesma resposta à esposa quando esta perguntava sobre o dia de trabalho:
- Minha linda, o trabalho ficou lá no lugar dele. Minha vida é aqui, em casa, sem compromisso, sem preocupações. Se perguntares a cor da minha sala eu sinceramente nem saberei lhe responder, pois essas coisas simplesmente apagam-se da minha mente.
A mulher invejava essa virtude do marido, nunca o ouvira dar um pio sobre problemas na firma ou discussões com colegas de trabalho.
Constantemente bem humorado, ele curtia sair todos os fins de tarde, depois do café, para passear no calçadão praiano com a mulher. Inspirado pela brisa fresca do mar e pela luminosidade vermelhada do por do sol sentia-se um apaixonado pela vida. Para Zequinha não existe tempo feio, para Zequinha o tempo nem existe e dentro de seu peito um coração jovem jamais envelhecia.
Naquele fim de tarde a luz do sol estava deslumbrante, seus raios refletidos no horizonte criavam uma espécie de caminho dourado no mar, um rastro da cor de telha encerada. Aquilo fez Zequinha se lembrar de sua infância, soltar pipas, lá perto do sobrado abandonado de sua terra natal, um abandonado casarão ocre com janelões brancos dentro de um grande quintal desprezado e abandonado. Aquela casa velha e tétrica era conhecida como a Casa do Elói. Foi então que, quase que de maneira hipnótica, tomou uma decisão: Na manhã seguinte iria lá ver como estava o velho casarão.

....

Dia seguinte – Cena 3

- Ele deve estar chegando. O radar portátil alerta a proximidade de um Terráqueo.

A criatura da uma recuada e esquiva-se atrás de uma placa publicitária. No esquisito radio transmissor houve uma nova instrução:

- Confirmado. É o humano que estávamos esperando, pode seguir com a operação.

Ali perto um homem se aproxima em passos lentos.
- Como tudo aqui mudou. Tolice minha achar que aquele casarão ainda estivesse de pé. Pensa.
Ele percebe um pequeno movimento atrás da placa. Numa fração de segundo sente um calor esquisito na pele e seu corpo é abduzido num piscar de olhos.

Numa mesa metálica azulada o corpo do homem esta inerte. Não está morto, apenas dorme um sono profundo. Ao seu redor um grupo de criaturas inexplicávelmente estranhas conversa entre si. Eles têm braços longos, pernas curtas e seus crânios são inviáveis, com olhos separados, lembrando as cabeças de tubarões martelo. Conversam baixo quase de forma telepática. Um deles diz algo a respeito do fim de uma experiência e injeta um liquido no pescoço do homem através de uma seringa incrementada.
Em seguida um deles diz:

- Ok, vamos devolver este e procurar outro.

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1976 – Nave Vastnes 800 - Cena 4

O virdiano fala:
- Caros senhores Virdianos, estamos próximos do planeta Aqua denominado Terra pelos humanos. Hoje seguiremos com nosso experimento de bi-polaridade existencial induzido. Vamos introduzir em mais um humano esta droga e daqui a alguns anos retornaremos com o antídoto para verificação.
Neste intervalo de tempo observaremos o comportamento dessa cobaia, que deverá mostrar duas personalidades distintas. Nessa nova versão da droga, conseguimos separar esses universos paralelos através de uma chave.

- O que seria essa chave?
Perguntou outro Virdiano

-A chave de comunicação entre essas duas faces será ou não uma noite de sono ou até um cochilo. A cobaia vai transitar de um lado para o outro nesses instantes de repouso. Deveremos fazer a introdução do antídoto em cerca de 35 anos.

-Vamos ao Trabalho!

....

1976 – Casa do Elói – Cena 5

O garoto José Carlos brinca distraído de pandorga. Ao ouvir um zumbido a criança olha curiosa uma pequena luz por detrás do vizinho casarão amarelo. O zumbido aumenta e ele assustado olha para o céu. As nuvens parecem pegar fogo. Numa cena pictórica uma sensacional nave espacial surge do alto em frente aos seus olhos.