quinta-feira, 16 de abril de 2009

Sombras do Passado


O homem esticou os braços, tipo se espreguiçando. O clima era agradável, o aroma das flores acariciava suas narinas como o toque de um bebê de colo. A primeira coisa que seus olhos castanhos enxergaram, foi o céu incrivelmente azul. Ele estava no meio de um bosque. Não sabia quanto tempo ficou ali adormecido. Olhou em volta a vegetação de pequenas árvores e arbustos, um pouco mais a frente um jardim de margaridas. Deu mais um bocejada e finalmente ao avistar o pequeno lago e a concha caída ao seu lado lembrou o porquê daquela situação. A princípio ficou confuso. Não sabia se estava satisfeito ou não. Chegou mais perto do lago. A água era cristalina e com a luz daquela manhã, poderia perfeitamente ser usada de espelho. No reflexo, a própria face cansada, os olhos perdidos numa olheira cinza como restos de uma fogueira. Ele sabia o que isso significava. Havia chorado muito.

Andou dois passos e juntou a concha. Lembrou das palavras da velha feiticeira.

– Essa concha que lhe entrego, está preparada para lhe dar uma única chance. Depois de usada, pode jogar fora. Tenha certeza de que quer isso.

O homem então amarrou a concha a uma pedra e jogou-a no fundo do lago. Saiu do bosque e foi ver como era a pequena cidade que escolhera para viver essa nova vida. Ao avistar a modesta e bucólica praça central, o homem sentiu uma lufada de acalento. Viu uma linda menina que brincava com uma boneca de pano junto com a mãe. Ele tinha paixão por crianças, principalmente aquelas de cinco ou seis anos, com suas inocências exalantes, sua graça fácil e seus pequenos e adoráveis problemas. Crianças eram como elixir para todas as agruras daquele homem, adorava conversar com crianças, protegê-las. Com ele por perto, nenhuma nunca sofreria.

A mulher, mãe da menina, aproximou-se e perguntou ao homem:
- O senhor é novo por aqui?
- Sim, cheguei há pouco tempo, aliás, a senhora sabe onde posso arrumar um quarto para descansar?
- Claro.

Em poucos minutos o homem chegou até um sobrado onde alugavam os quartos superiores. Preencheu uma pequena ficha com seus dados. No preenchimento, foi lembrando algumas coisas: Sua família era de muito longe, antes dali morava sozinho numa cidade a cerca de 600 Km, era autônomo, trabalhava com carpintaria. Fazia armários, cozinhas e outras peças menores.
Pensou consigo mesmo:

- O que será que deixei lá naquele lago? O que me causava tanta dor e que arranquei a força de minha mente?

Ele foi muito bem avisado pela bruxa quando a procurou. Tomar a água natural de um lago usando a maldita concha enfeitiçada seria um passo sem volta. A bruxa fez por pena do homem. Todos na velha cidade sabiam do sofrimento dele. Ela fez o sortilégio, porém deixou claro que isso implicaria em mudanças radicais na vida do infeliz. Deveria procurar um lago bem longe, deveria passar a morar em outra cidade. Ele nunca poderia ter contato com o passado, pois uma pequena lembrança do inoportuno e os desconhecidos efeitos colaterais poderiam ser catastróficos. A magia era simples. Tome um gole de água natural nessa concha e o que lhe faz sofrer cairá no mais obscuro esquecimento.

Agora o homem estava ali, tomando um chá fumegante numa caneca de louça e olhando pela janela. Lá embaixo na pracinha ainda estava a menininha e sua boneca de pano. Na cabeça dele um fantasma incomodava.

- O que será que eu apaguei de minha memória? Que desgraça foi essa, que mesmo mudando minha vida, minha moradia e meu cotidiano, eu preferi que fosse deletada de minha cabeça?

De fato o homem começou uma nova vida naquela cidade. Tinha respeito, tinha amizades e uma boa convivência social. No entanto lá no fundo do seu coração algo o atormentava. Era como uma fatia de sua alma que vinha dia a dia sendo devorada por um monstro ou um diabo faminto. Nunca havia paz no seu espírito. O homem sempre levava consigo um nó cego e apertado dentro do peito. O tempo foi passando e com ele viria a certeza de que aquele legado era a maior das maldições.

O homem mesmo assim tentou ser feliz. Casou-se teve filhos. Adorava seus filhos. Eles acalmavam sua angustia e o faziam esquecer por momentos do seu desejo de voltar no tempo e nunca ter bebido aquela água. Por diversas vezes pensava em voltar à antiga cidade, mas o aviso da velha malévola sempre impedia sua coragem. Ele tinha uma família agora. Precisava que os filhos tivessem um pai que os protegesse. Sabe-se lá o que velhas lembranças não causariam àquele já maduro homem.

Anos passaram. Num dia, assim como uma flor que desabrocha ou um casulo que é abandonado, o homem decidiu enfrentar seus medos. Beijou a mulher os filhos e rumou ao passado, desobedecendo a única regra imposta pela feiticeira, ele foi procurar respostas na sua cidade anterior.

...


Na modesta lápide estava escrito:

Catarina Dumont 1991 – 1995.

O homem com os olhos grossos de lagrimas sentia o peso do mundo nas costas. Na sua atordoada mente, como o canto eterno de uma cigarra, vinha a pergunta:

- Como pude! Como pude deixar pra trás a lembrança de uma menina de 4 anos? Minha filha.

Seu sofrimento não era saudade, não era perda. Seu sofrimento era remorso. Escolheu esquecer uma filha por sofrer demais pela perda dela. Como pode ter sido tão tolo. Agora ele estava ali, olhando para um tumulo de alguém que ele nem tinha idéia de como era. Sim a maldição estava intacta, ele continuava sem lembrar. O que havia mudado agora era que a mãe da menina havia lhe contado tudo. A mulher estava ali do lado. Seu sentimento era de desprezo pelo homem que abandonou a casa no pior momento de suas vidas. Na verdade ele nunca se ateve que ao pedir para esquecer a filha, numa feitiçaria desumana, que a lógica o fizesse também esquecer a mãe. Aquela estranha mulher tinha toda a mágoa do mundo em seu coração e tinha todo o direito de odiá-lo.

A mulher se afastou. O homem então colocou a cabeça entre as mãos e pediu perdão. Caiu de joelhos e em seguida deitou-se na terra em posição fetal. Soluçava que nem criança. As lágrimas foram encorpadas com gotas de chuva. Debaixo de forte chuva o homem estava lá deitado aos prantos.

...

O pano úmido de água no rosto o fez despertar, no quarto claro do hospital ele finalmente saiu do estado catatônico de choque. Ali ao seu lado sua esposa limpando-lhe carinhosamente sua face. Agora ela já não era mais estranha. O pesar no olhar dela denunciou toda a situação. A menina deles de fato havia partido. Ele se lembrou de Catarina, de seus vestidinhos, de seu sorriso branco, seu aconchego no colo e sua meiguice. Provavelmente ele havia entrado naquele estado vegetativo diante da tragédia.

Sortilégio, bruxa e maldição. Tudo não passou de um delirante pesadelo. O homem estava com o coração despedaçado. Mas no fundo de sua alma ele agradecia a Deus por lembrar que um dia teve a doce Catarina nos seus braços.

segunda-feira, 13 de abril de 2009

Um Homem de Família



Ali, naquele instante, ele notou que já não era tão engraçado. Contou a piadinha, crente que ouviria risadas. A mulher, o filho adolescente e a pequena menina, continuaram cada um com as mesmas expressões. O sol fumegante estava propício para uma praia. Era início de feriadão. Haviam chegado com tranqüilidade naquele balneário, um fato raro que o trânsito não tivesse atrapalhado. Enfim; tudo estava bom demais para que alguém aceitasse todo aquele mau humor. Resolveu fazer uns testes. Elogiou o biquíni da esposa. A mulher nem aí. Perguntou se o rapaz queria dar uma volta até a costa. O filho de forma seca disse que não. Pegou as raquetes de frescobol e sugeriu a caçula uma brincadeira na beira do mar. A garotinha respondeu que ficaria por ali mesmo, na sua cadeirinha. Perguntou se alguém queria um sorvete. Todos disseram que esperariam mais um pouco. Finalmente perguntou qual era o problema. Todos responderam de forma não muito convincente que não havia problema algum.

Foi assim por todo o resto do dia, sua família o tratava com frieza, não faziam crer que ali estava aquele que deveriam mais respeitar. Se pelo menos houvesse alguma reclamação, ou que tivessem brigado. Um sorriso! Ah que bom seria um simples sorriso. O feriadão, desse jeito então, foi se esvaindo como areia de praia entre os dedos.

Na segunda feira, ao sair pra trabalhar, o sujeito ouviu um estrondo e uma grande rachadura se abriu no chão, bem à sua frente. O tremor da terra o fez cair no fundo daquele fosso. Na queda ele machucou a perna e ficou sentado pedindo por socorro. O local era úmido, cheio de limo. A voz saia rouca e enfraquecida. Ninguém lá em cima parecia ouvir. Apenas o eco respondia a cada grito. Parou de berrar. Levantou-se e tentou, mesmo com a perna daquele jeito, escalar as paredes daquele grotão. A falta de um apoio e a perna dolorida não o deixava sair. No entanto é preciso que sempre saibamos de uma coisa; tudo sempre pode piorar e uma forte chuva veio, pra transformar o que era patético em perigoso. A preocupação agora era aquilo tudo desmoronar. Seria enterrado vivo.

Pensou na sua esposa, tão apaixonada quando jovem, e lembrou certa ocasião em que ela lhe escreveu uma carta de três folhas com poemas, planos e cumplicidade. Ele não tinha dúvidas que aquela era sua alma gêmea. Anos fabulosos de namoro e casamento, pena que ela não achava mais graça nas suas piadas e pelo que parecia, na sua companhia. Há certo tempo que ele não à via sorrir. Um pedaço do barranco cedeu e o homem agora estava soterrado até os joelhos. De fato ele estava em apuros.

O filho surgiu-lhe na lembrança. Garotão esperto. Era adorável quando em outros tempos levava o então menino, pra chutar umas bolas nos campos de futebol da associação. Até depois, com o rapaz já mais crescido, adorava ver a cara de satisfação ao ensiná-lo a dirigir. Tudo isso, porém, já fazia parte de um passado distante nos sentimentos do filho. A esta altura a terra já batia no peito dele.

A lembrança da caçulinha era o que mais doía para o infeliz homem. Como uma criança tão pequena poderia ter adquirido tanta indiferença a um pai que tentava de todas as formas agradá-la. Tudo bem que ele era meio “sem noção”, mas crianças pequenas não deveriam ser tão exigentes. Parecia que ela tinha sido treinada para ignorar o próprio pai. Definitivamente ele não agradava mais aquela gente.

A terra, praticamente uma lama movediça, até o pescoço, já não permitia qualquer movimento do corpo. A submersão foi acelerada e em poucos minutos o homem conseguia apenas ver por um pequeno buraco a luz da superfície. Sua respiração era precária. Nos olhos já cheios de umidade, não se sabia o que era chuva e o que era lágrima. A falta de ar, o desespero, uma sensação de pânico tomou conta do homem. Já estava se entregando.

Foi um som, abafado que ainda fez o homem ter uma fagulha de ressurreição, um latido. Cristo, o cão. Meu Deus, como ele poderia ter esquecido o amigão. Cristo era o cachorro da casa, um pastor alemão forte e brincalhão. Todos gostavam dele. O homem logo sentiu puxões pelos braços. Cristo, não se sabe como, descobriu o dono ali enterrado e, mesmo debaixo do temporal, cavou sem desistir até que conseguisse puxá-lo, com os dentes, pela camisa. O homem com a ajuda do fiel amigo conseguiu então chegar de novo ao nível da rua. Estava todo enlameado, com a perna dolorida. Olhou para a casa a cerca de cinco metros. A chuva era torrencial. Pegou Cristo e lhe tirou a coleira, em seguida despiu as próprias roupas e saiu dali mancando, nú, com a companhia do cachorro e a chuva lavando sua alma. Foi se afastando da casa. Ainda falou em voz baixa:

--- Adeus, família de merda.

Nunca mais o homem e o cão voltaram para aquela estúpida casa.