sexta-feira, 30 de julho de 2010

O dia da Liberdade


Abriu os olhos e viu que o dia havia chegado finalmente. Seu corpo, com certeza, estava debilitado em face da noite cheia de pesadelos e muito mal dormida. A questão é que a manhã havia florescido e aquela escuridão que parecia eterna em certos momentos, prometia nunca mais voltar.
Olhou pela pequena janela e viu o sol ainda tímido por detrás de belas nuvens rosadas. Sentiu um doce cheiro de amendoim. Achou engraçado e lembrou-se do doce preferido. Tanto tempo esperando por aquela aurora e finalmente tudo seria resolvido. Tinha certeza absoluta que a noite que estava por vir seria diferente de todas as angustiantes noites de até então.

Em pouco tempo o velho amigo surgiu na porta, este veio com um olhar cúmplice do tipo que sabia o quão especial era aquele amanhecer. Disse um “olá” ríspido, o jeito seco de sempre, poucas palavras, a sombra de seu chapéu não permitia ver com exatidão sua expressão, mas poder-se-ia apostar que tinha aquele marcante olhar vago.

Saíram dali e foram para o pátio, onde um calor agradável remetia a outras primaveras e aos deliciosos desfiles festivos na cidade natal quando ainda criança. Eram tempos tardiamente valorizados. Nessas lembranças estavam lá seu irmão, sua mãe e sua prima, todos vestidos com roupas dominicais e empolgados com os carros alegóricos e suas personalidades. Numa fração de segundo o pensamento já estava novamente no pátio, no calado amigo e naquele amanhecer.
Ficaram ali por um tempo. Na volta ao interior do prédio, um vizinho ainda estendeu e mão e esboçou algo entre um sorriso e um alento.
Já dentro e olhando a fumaça que saia da caneca de café fumegante até a pequena abertura gradeada perto do teto, ficou, em pensamento, repetindo consigo mesmo que logo estaria definitivamente livre. Livre como um pássaro, livre como uma criança. Não conseguiu conter um sorriso e as lágrimas nos seus olhos.

Depois do almoço o amigo trouxe o pequeno prato com cinco cajuzinhos de amendoim. Uma pequena surpresa como despedida, disse. Abraçaram-se. Cada um daqueles docinhos foi devidamente saboreado. Se a liberdade tivesse gosto, o gosto seria esse. Pensou.

Chegada a hora. O amigo surgiu soturno com mais dois. Foram caminhando pelos corredores, rumo à liberdade absoluta. Sentia olhares de vizinhos na sua direção, nas suas costas. Uns pareciam invejar, outros pareciam temerosos com sua libertação. Na mão apertou a foto da esposa e filha juntas sorridentes. Fechou de leve os olhos e sorveu cada gota daquela desumana saudade que lhe invadiu. Sussurrou baixinho o nome das duas.
Um dos homens abriu uma pesada porta de grade. Atravessaram mais dois ambientes e finalmente chegaram.
Levou a foto até o peito perto do coração. A cadeira estava toda preparada e o espaço limpo. As demais cadeiras estavam todas vazias. Ninguém tinha aparecido. No relógio faltavam dez minutos para a esperada liberdade. Um Homem com um gorro nas mãos, o padre, outro perto do telefone. Sentou-se na cadeira. Estava calmo, tranqüilo, a verdade era que há anos temia por aquele momento e agora sabendo que tudo terminaria sentia um mar de felicidade inundando seu ser. Adeus noites de pesadelos, adeus tardes de desespero, adeus insônia maldita, adeus pesar na consciência, adeus prisão da alma. Desde criança não sentia tanta calmaria. Pelo cansaço de anos de noites mal dormidas não pode evitar um cochilo.
Foi assim. Esse foi o presente final que Deus lhe deu. Uma vida equivocada, decisões estúpidas, ações imperdoáveis e agora, o condenado a morte, foi embora, em paz, abraçado ao retrato como que segurando uma estrela e dormindo como um anjo diante de uma constelação
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