terça-feira, 15 de março de 2011

O Milagre


Sua alma estava seca, tanta lágrima havia corrido em sua face que agora o que existia era uma sensação de vapor, uma espécie de fumegante névoa de dor e secura nos cílios. As remelas nos olhos inchados pareciam catarata que lhe escurecia a vista e obstruía a triste imagem do filho ali deitado. A cabeça pendia sobre ombros desumanamente caídos. Na mesa central o pequeno e fúnebre caixão. Os pensamentos já estavam desconexos, já não existia mais perguntas a serem clamadas, já não existia mais lógica nenhuma, nem mesmo nos sentimentos e no pesar dos outros.
Todos os abraços e mãos as costas eram como toques fantasmagóricos, sem sentido algum, apenas contato frio e inútil. Uma tontura insistia em ir e vir, obrigando seu corpo desgraçado a ficar sentado numa cadeira mirando o chão. Com a cabeça baixa, como não poderia deixar de ser, observou pendurado no próprio pescoço seu crucifixo. Pensou na própria fé.
Onde está você? Pensou. Onde está você agora? Insistiu no pensamento. A pequena cruz com o pequeno Cristo balançava devagar e hipnótica.
Num ato desesperado e absoluto abriu com firmeza os olhos e deixou pingar uma ultima e grossa lágrima no chão. Fixou firme o olhar no salvador e fez uma derradeira oração em pensamento:
- Por tudo de mais sagrado, por tudo que eu possa dar e tudo que eu possa querer. Ponha-me nessa cruz, me entregue essa sua dor, coroe-me com esses espinhos, açoite-me com mil chicotes, atravessa-me com cravos e rasgue-me com uma lança. Mas meu Senhor, meu ultimo refugio e meu oásis, pelo amor de seu Pai e pelo amor por minha criança, que agora está ali naquela mesa. Permita-me a graça de um milagre, ressuscite minha Fé e minha criança, ou ignore minha pobre alma, mas faça pela criança. Jogue-me no inferno se preciso e lá lhe serei grato. Qualquer coisa, qualquer modo, qualquer preço, mas salve ela do mundo dos mortos, traga-lhe de volta para os demais, traga-lhe de volta para viver um tempo digno.
Como que por loucura ele sentiu um sussurro nos ouvidos, quase um zumbido:
- Sem Fé, não há milagres, sem Fé não há milagres.
Sentiu um tremor na alma, pois aquilo pareceu uma resposta, mesmo que talvez fosse apenas um devaneio. Apegou-se aquilo como uma semente, uma fagulha de chance. Foi naquela fração que lhe veio a solução. Caiu de joelhos e vociferou o resto de sua oração:
- Um SONHO, isso! Faça disso tudo um sonho! Um pesadelo que estou tendo. Se minha fé não alimenta um milagre, então faça disso tudo um sonho, faça disso tudo um maldito sonho! Um homem sem fé não pode ter milagres, mas pelo menos pode sonhar. Meu pequeno e sofredor Cristo, minha vida poderá até virar um pesadelo depois, mas nesse momento, diga-me que isso não passa de um sonho, por favor.
Um barulhinho na mesa fez o homem levantar a cabeça e os demais voltar-se para o caixão. A pequena criança levantou primeiramente os braços e em seguida abriu os olhinhos e dai levantou o corpo. Um burburinho se fez. Vozes exaltadas, choro, sorrisos.
- Um Milagre. Alguém disse mais alto.
O pai levantou da cadeira e abraçou a criança aos prantos. Era um milagre. E ele começou a gritar:
- Desse-me um milagre, mesmo sem Fé! Desse-me um milagre mesmo sem Fé!
A felicidade daquele instante era algo fora do comum, algo como um delírio, algo como se ele estivesse...





...Sonhando.

...

Quando abriu os olhos, estava no chão sendo acudido pelos parentes e amigos.
- Você desmaiou e deve ter tido algum sonho. Disse-lhe o primo.

Todos ainda estavam por ali. Todos de preto e tristes e no pequeno caixão ainda estava inerte a dor da realidade.

Sem Fé não há milagres, lembrou o infeliz ali deitado no colo do primo. No entanto lá dentro de seu coração uma minúscula chama lhe aqueceu. Talvez o sonho não tivesse acabado e esse pensamento, essa chama, talvez fosse: FÉ.

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