Existem situações na vida em que ninguém nunca apostaria num determinado desfecho. Altamiro, nosso personagem, protagonizou um cruel enredo do destino. Ele pagou sua felicidade com a moeda errada.
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Atolado em dívidas até o pescoço o simpático alfaiate olhava com preocupação e marasmo através do letreiro na sua porta de vidro: “etaiaflA ueS O – orimatlA”. Era assim que ele lia seu nome e seu ofício, invertidos em letras arranhadas e desgastadas no vidro da porta daquela sala no velho prédio central. O aluguel estava quase quatro meses atrasado, tinha dívidas com o açougue, a mercearia, e sua conta na padaria fazia parecer que a multiplicação bíblica dos pães tivera sido debitada no seu nome. No retrato da mesa seus dois meninos: Adalberto e Antonio, dois moleques super espertos que deveriam agora estar arranjando alguma traquinagem no colégio público da cidade, lhe davam um sorriso apoquentador. O amor daqueles meninos, junto com a cumplicidade de sua mulher Lavínia, era todo o tesouro que lhe sobrara no mundo. Altamiro, na verdade, mesmo com os dias negros na alfaiataria nunca deixava de agradecer a Deus por sua família.
Foi numa manhã de céu carregado que adentrou a sala de Altamiro um senhor com olhar perdido e esbugalhado que mais parecia um sapo velho e resignado com a vida. Por alguns segundos Miro pensou ser um cliente, mas isso logo foi descartado face às roupas velhas do visitante. Um homem naquele estado jamais teria ambição de contratar um alfaiate. Não que o preço de Altamiro fosse alto, mas sim porque vaidade era algo que passava longe daquele pobre cadáver ambulante. O vivente esticou o braço e ofereceu um papelote a Altamiro. Era um bilhete de loteria.
- Sei que tens dívidas, e as coisas não andam boas. Disse o estranho.
- Obrigado pela tentativa, mas eu seria um irresponsável se gastasse agora dinheiro com jogo. Respondeu Altamiro.
- Quem esta lhe cobrando algo? Você só tem que aceitar sob uma condição.
O silêncio do alfaiate, fez com que o homem continuasse:
- Se fores premiado, deverás fazer o que é certo com o dinheiro. Esse dinheiro só deve ser usado por quem precisa.
O velho disse isso com os braços ainda estendidos em direção ao confuso costureiro.
- Pobre velho louco. Pensou.
Pegou o bilhete das mãos do esquisito e antes que pudesse agradecer, ao erguer os olhos viu apenas a porta se fechando e o vulto do misterioso indo embora.
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Altamiro entrou radiante em casa, Abraçou Lavínia e deu-lhe um beijo que a fez a mulher voltar aos dezesseis. Tomou-a pela cintura e rodopiou feliz cantarolando uma melodia cinematográfica. Lavínia que há muito tempo não via o marido tão feliz, não sabia o que dizer. Em poucos segundos os garotos já estavam ao redor soltando suas risadas sem entender nada daquele momento de loucura do pai.
- Ganhamos na loteria minha amada! Vamos pagar todas nossas dívidas!
A morena de cabelos negros cacheados abriu um sorriso branco e intenso como se fosse uma foto do verbete Felicidade num dicionário ilustrado.
- Quanto Miro? Quanto ganhamos?
- Querida! O alfaiate agora diminuiu um pouco o esplendor de sua felicidade e explicou: Vamos pagar nossas dívidas e isso já é maravilhoso.
- Então não ganhamos tanto assim. Respondeu a agora serena Lavínia.
- O restante, eu já resolvi, nós doaremos para o Hospital e o Asilo da cidade. Completou o homem.
- Que bonito Miro! Porque não compramos com essa sobra alguns mantimentos? Assim pouparíamos o trabalho das enfermeiras de ter ainda que ir ao comércio. Lavínia imaginava uma cesta básica com pães, sucos, frutas e talvez uma garrafa de vinho.
Altamiro olhando nos olhos da mulher respondeu:
- Creio que eles poderão administrar o dinheiro da forma que melhor lhes convir Lavínia querida. Talvez queiram fazer alguma reforma, ou comprar veículos novos. A ambulância deles esta tão velha.
Nesse momento Lavínia sentiu algo errado no ar.
- Reforma? Ambulância? Quanto é esse “resto” Altamiro?
- O Prêmio total foi de R$ 18 milhões e após o pagamento do que devíamos sobraram 17 milhões e novecentos e noventa e seis mil reais.
Lavínia pareceu transformar-se. Sentindo veracidade nas palavras e nas intenções do marido, levantou-se andou alguns metros e desabou num choro absurdamente revoltado. Era o começo do fim.
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Foram meses de discussões, advogados, debates televisivos, noticiário na porta da humilde casa de Altamiro.
Os rostos daquela família já estavam ficando enjoados em todos os telejornais do País. Lavínia, Altamiro e seus filhos eram tema de nove em cada dez conversas em todos os cantos da cidade, do estado e do país. Até no estrangeiro, um site ou outro comentou sobre o assunto. A tônica era sempre a mesma: “Homem louco”, “Pai de família incapaz”, “Pai desnaturado”, “Pobre e tolo”, e até “Golpista”. A verdade era que a novela estava fervendo, as vítimas eram Lavínia e os filhos, já o pobre Altamiro, nunca conseguiria fazer alguém entender que sua palavra tinha sido dada e que aquele dinheiro enviado por Deus tinha endereço à satisfação dos necessitados.
O certo é que depois de muito tempo e de muita briga, não havia mais nenhuma pedra sobre pedra no castelo daquela família. Adalberto e Antonio, afastados forçadamente dele, nem mesmo mais olhavam nos seus olhos. Lavínia que a principio conseguiu sustentar os filhos, sozinha, agora aguardava finalmente a liberação do dinheiro do prêmio na justiça. A parte de Altamiro continuaria onde desde o principio ele havia resolvido: No asilo e no hospital.
Altamiro nem tinha mais sala pra trabalhar. Desde o inicio daquilo tudo as pessoas o começaram a tratar com desconfiança, como se não fosse capaz de nada. Fora reduzido a uma insana inutilidade. Seus familiares, irmãos e tios, nunca o entenderam, tentaram até mesmo mandá-lo para algum tipo de asilo psiquiátrico. Já sem dinheiro, sem viço e sem vontade de coisa alguma, perambulava por becos e ruelas. Volta e meia visitava sua mãe e seu pai no cemitério. Tinha pra si que eles eram os únicos que o entenderiam se estivessem vivos.
Sentou-se num fétido canto de um obscuro recuo na cidade onde alguém deixou cair um maço de cigarros na sua proximidade. Nos bolsos sentiu um objeto pontiagudo, era uma velha agulha esquecida. Ficou observando seu material de trabalho, agora inútil, nos sofridos dedos machucados. Pelo orifício da agulha viu lá no fundo do beco o maço de cigarros no chão, ali estampado um camelo. Lembrou das brincadeiras com os filhos, lembrou de Lavínia, a velha Lavínia antes de tudo aquilo acontecer. Seus olhos ao contrario da garganta estavam inundados.
Adormeceu e sonhou. No seu sonho ele galopava num camelo e atravessava um portal dourado no formato do buraco de uma agulha.