sexta-feira, 28 de agosto de 2009

Violência Gratuita


A sineta toca.

O homem trajado confortavelmente com seu moletom olha pelo olho mágico. Parece um rapaz. Ao abrir, percebe que o visitante não era assim tão jovem como parecia. Devia ter uns 25 anos.

- O que deseja? Pergunta.

- O Senhor é o dono do cinema localizado no bairro de Campinas? O Cine Europa?

- Sim. Algum problema? Aliás, porque o porteiro não avisou?

- Desculpe senhor. O Porteiro tentou, mas o interfone parece estar com algum problema. O senhor pode conversar agora?

O homem pensou por um instante e perguntou:

- Qual seria o assunto?

- Eu gostaria de conversar com o senhor sobre um filme.

Agora mostrando um pouco de impaciência o homem emendou:

- Meu caro. O que houve? Sou apenas o dono do cinema. Você teve algum problema com algum empregado ou coisa parecida?

- Não senhor. Foram todos muito educados comigo. Eu gostaria de falar sobre o filme mesmo. Eu não gostei do filme.

Agora já elevando o tom da voz e deixando claro certo aborrecimento, o homem fechou a porta dizendo:

- Haja paciência. Rapaz vá ver se eu estou na esquina.

E ainda pensou.

- Só o que me faltava. Agora as pessoas virem a mim pra dizer que não gostaram de um filme.

Não deu quatro passos e a sineta tocou novamente.

Irritado voltou e de supetão abriu a porta pronto para gritar com o visitante. Não conseguiu. Logo que abriu a porta, dois canos de um rifle beijaram sua boca.

A revolta agora tinha sumido. Com a arma enfiada entre os dentes o homem era a imagem do pavor. Vagarosamente o invasor foi adentrando o apartamento. Fez um sinal e o homem entendeu que seria para sentar-se na poltrona branca da sala. O rapaz voltou com a arma ainda apontada e trancou a porta. Em seguida sentou-se num sofá próximo e de frente ao homem, dizendo:

- Acho que agora poderemos conversar.

O homem agora parecia menos assustado, mas ainda tinha os olhos vigilantes e preocupados. Com a voz meio embargada tentou dizer algo:

- O que você quer?

- Falar sobre o filme que não gostei.

Silêncio.

O perturbado rapaz então aproximou novamente a sua arma, dessa vez apontando para a testa do homem.

- O senhor está sozinho. Eu sei disso porque vi sua mulher saindo agora a pouco. Ela pode voltar a qualquer momento. Portanto vou tentar ser breve, o contrário daquele filme arrastado.

- Eu não estou entendendo! Disse o homem, sendo logo interrompido aos gritos pelo invasor:

- Quem não entendeu nada fui eu seu filho da puta!

O rapaz então encostou o cano do rifle na testa da confusa e apavorada vítima.

- Não vai perguntar de qual filme estou falando?

Nervoso o homem nem conseguiu proferir qualquer palavra.

- Você deve estar incomodado com esse cano na testa. certo? Aliás, você deve estar pensando por que esse cano está quente? Se você perguntar ao porteiro, com certeza ele não vai lhe responder nada. Completou o doente com um sorrisinho emblemático no rosto.

O insano rapaz depois de desesperadores e nauseantes segundos roçando a arma acima dos olhos do homem, dá uma pequena trégua, afasta a arma e diz:

- Violência Gratuita.

Percebendo o olhar perdido do agora desfigurado anfitrião, ele completa:

- Esse foi o filme. Violência Gratuita. Você sabia que eu poderia processá-lo? Eu paguei pela aquela merda de filme, e ali escrito bem grande no cartaz estava a palavra Gratuita.

Naquela situação tão surreal, o homem ergueu os vermelhos olhos e conseguiu rosnar algo:

- É esse o problema? Você quer dinheiro?

O jovem aos berros emendou:

- Claro que não seu idiota. Eu sei muito bem que o nome do filme é apenas o nome do filme. Eu sei que o termo Violência Gratuita não necessariamente tenha a ver com pagamento ou não. Eu não sou um débil mental. Estúpido é você que pensa que pode exibir um lixo daquele e sair imune. Eu apenas fiz uma piadinha. Igual ao filho da puta do filme.

O homem ainda conseguiu ter voz pra dizer:

- Por favor, não faça nada que se arrependa. Você está alterado, é apenas uma ficção. Não deixe que uma bobagem dessas estrague sua vida.

O diabólico solta uma gargalhada ensandecida e fala:

- Você é tão idiota.

Em seguida puxa o gatilho e faz a cabeça do homem explodir igual a um tomate. O sangue chega a sujar a própria face do homicida.

O corpo do homem fica dependurado sobre o braço do sofá agora branco e carmim. No seu pescoço apenas um pedaço da cabeça e acima um trapo de carne representa o que um dia foi um crânio. Os olhos estão inundados por um grosso sangue que pinga freneticamente no tapete.

O rapaz levanta-se, segurando o rifle com os cano ainda fumegante, olha o próprio reflexo no vidro da janela e sai.

Já nos corredores do prédio ele tira um pedaço de papel do bolso. Ali escrito uma seqüência:

dono do cinema,

diretor,

roteirista,

produtor,

ator ...

Com um pouco de sangue ele risca o item dono do cinema.


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Conto inspirado, baseado, vomitado após ver filme "Violência Gratuita (Funny Games US) - 2008.

quarta-feira, 19 de agosto de 2009

O velho e a sarça


Quando vi o bolo de ameixa e aquela cantoria, veio à minha cabeça aquele velho homem que certa vez conheci num asilo de São Vincent. Acho que era inverno. Lembro perfeitamente que olhando para a lareira acesa, o ancião falou que tinha 95 anos e que viveria muito mais. Eu e meus amigos do colégio achamos graça da segurança dele. Com muita eloquência o experiente homem nos disse com todas as letras que sabia o segredo da vida eterna.
Começou dizendo que foi aos 17 anos que descobriu o segredo. Vivia apavorado com a peste que varria as casas naqueles tempos. Foram nesses terríveis anos que perdeu irmãos, pai e mãe. Na sua história o grande momento foi quando um arbusto em chamas conversou com ele. Obviamente que eu e meus amigos, todos muito gozadores, mas educados, fizemos de conta que não sabíamos que árvores pegando fogo não são lá muito originais no que diz respeito a mensagens de Deus. De qualquer forma o simpático e falante contador de histórias nos confessou naquele dia o grande segredo que guardava até então.
O vegetal, que servia de instrumento para a voz de um anjo ou do próprio Deus, disse-lhe que não temesse a morte. Ele, o ouvinte, seria o último homem a viver na terra. O mundo foi criado para seu deleite. As pessoas, absolutamente todas as pessoas do mundo haviam nascido para que ele pudesse conhecê-las para que ele pudesse amá-las ou não.
A pequena e fumegante acácia ainda continuou dizendo que os animais no mundo haviam nascido para alimentá-lo, ou diverti-lo, ou até mordê-lo. Se existia um rio com água clara e limpa, esse rio com certeza seria para saciar sua sede e irrigar tudo o mais que fosse necessário para sua vida.
Aquela moita ainda explicou que obviamente todas as coisas criadas especialmente para ele, poderiam e até deveriam ser utilizadas por outros. Afinal de contas esses outros também precisavam levar uma vida para satisfazer ou enriquecer a vida dele.
O homem então disse que perguntou sobre sua mãe, seu pai e irmãos que a peste havia levado. A planta com voz firme ponderou que apesar do mundo estar girando ao redor daquele rapaz, isso não significaria um mar de felicidade ou um guarda chuva de proteção. A voz ainda completou dizendo que o universo havia sido criado para aquele jovem e que cabia a ele saber desfrutar desse grande presente. Mesmo assim o rapaz questionou sobre a morte desses seus entes queridos. A resposta novamente foi seca. O mundo foi criado especificamente para você. Todos ao seu redor morrerão. Você viverá para sempre.
Foi assim com essa história que o velho nos distraiu naquela visita àquele soturno asilo. Éramos jovens e tínhamos entre 19 e 21 anos. No ano seguinte ficamos sabendo numa reunião do grêmio estudantil que o folclórico “homem eterno” havia falecido. Foi uma sensação diferente, não conhecíamos aquela figura direito, mas a história dele nos cativou e nos entristeceu a sua morte. A encarregada que trabalhava naquela casa para idosos enviou-me uma carta confirmando o ocorrido e disse que um pequeno pacote havia sido deixado para nossa turma. Ninguém se preocupou em ir lá ver do que se tratava. Ninguém exceto eu.
O pacote feito de papel pardo e encerado estava bem amarrado. Dentro um caderno velho, uma espécie de diário. Tinha cerca de 200 folhas e iniciava com a frase: Não sei quando nasci, mas sei que nunca morrerei...
Foi nesse diário que o segredo foi realmente decifrado. Foi ali que entendi que morremos sim, mas morremos para os outros. Somos todos: Vidas paralelas. A sarça ardente havia contado ao homem que ninguém experimentaria a própria morte e todas as outras mortes seriam sentidas. Se alguém que você conhece morreu, pode ter certeza que esse alguém na verdade vive e que talvez você tenha morrido na vida dessa pessoa. Cada um leva um mundo dentro de si. O caderno ainda explicava que muitas vezes quando escapamos de uma emboscada da morte, como doenças ou acidentes, talvez ali tenha sido o fim da nossa linha no mundo de outra pessoa. Possivelmente um tio seu chora agora lembrando sua morte ao cair de um barranco quando criança. A princípio achei graça no absurdo de tal colocação.
Hoje, oitenta anos depois, quando todos os meus parentes já se foram e meus descendentes já me esqueceram, aqui sentado nessa cadeira e vendo aquelas crianças com aquele bolo de ameixa e aquela cantoria para o companheiro do quarto 14, começo a desconfiar. Talvez o velho tivesse razão.