quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

O Passarinho


Subi correndo a Rua dos Pombos, adentrei o matagal, atravessei o pomar e lá estava ele, bem na mira. O pequeno Bico de lacre com máscara azul, sim aquele era diferente de todos os outros vermelhos, era uma criatura única, fazia semanas que eu e meu irmão víamos aquele mascaradinho azul nas redondezas. Devagar fui pegando meu estilingue no grande bolso do velho paletó de meu pai. O passarinho estava ali a cerca de três metros, eu sabia que um movimento brusco e tudo se perderia. No outro bolso do paletó, busquei uma pelota de barro seco e com os dedos meticulosamente escolhi a mais perfeita, o tiro deveria ser perfeito. Aquele passarinho andava me desafiando nos últimos dias. Vamos lá “mascaradinho” azul, vamos ver se dessa vez você vai fugir de Ivan “o terrível”.

O estilingue já estava no ponto certo, meus olhos focaram “a vítima”, um pequeno momento de concentração e “zupt”.

Não consegui perceber se acertei ou não, corri para baixo daquela arvore, procurei ansioso. Lá estava ele, devo ter acertado sua asa em cheio, o pequeno se arrastava e batia desesperadamente sua asa saudável. Peguei-o com até um pouco de emoção. Seus pequeninos olhos penetraram profundamente nos meus, senti um calafrio, foi nesse instante que aconteceu aquilo que nunca mais esqueci, uma voz fininha parece ter saído daquela pequena criatura.

- Deixe-me no chão, eu sei que ainda posso voar! Disse a voz.

Como que hipnotizado, devolvi o pequeno para o chão perto da raiz do abacateiro. Não deu dez segundos e como por milagre, o arisco saiu voando como um raio.

- Seu babaca, eu vi tudo daqui! A voz agora vinha das minhas costas, era meu irmão que estava chegando. Ele continuou esbravejando:

- Você liberou o “azulzinho”! Estava na sua mão! Porque fez isso?

Na hora fiquei com raiva de mim mesmo, nem tive coragem de contar ao meu irmão que ouvi o passarinho falar. Ele ficaria rindo da minha cara.

Ficamos nós dois ali, olhando para o alto. Dois garotos magrelos. Eu com um paletó que me fazia parecer um pequeno padre, nossos pés descalços, a brisa do mar próximo fazia as folhas das árvores cantarem. Lá no azul do céu, o “azulzinho” que assim havíamos apelidado, fazia piruetas e parecia debochar de nossa incapacidade de voar.

....

- Vovô, vovô, veja! Pegamos, pegamos!

Minha neta corria afobada, invadindo o quarto onde eu olhava o computador. Nas mãos dela o alçapão e neste, todo enrolado na pequena rede, um pequenino passarinho. Com cuidado desvencilhei o bichinho para que não se machucasse. Para minha surpresa, ali em minhas mãos percebi que se tratava de um Bico de lacre e com os olhos envoltos numa risca azul. O tempo adentrou a janela daquele quarto como se fosse um furacão, uma correnteza de lava fumegante ou um turbilhão de emoção. Na minha mente surgiu de forma nítida todas as peripécias na praia da saudade, todas as correrias por dentre o matagal, as pescarias na ilhota e as tardes quentes no velho trapiche. Meus irmãos, meus pais, tudo tão intenso graças aquela pequena mancha azul na cabeça do apavorado pássaro.

- Vamos botar ele numa gaiola vovô? Perguntou minha esperta netinha.

- Não, minha querida. Vamos soltá-lo! Respondi.

- Mas “vô”! Foi muito difícil pegar esse danado. Respondeu a pequena.

- Mas vamos deixar que ele possa continuar voando querida.

Então abri lentamente as mãos perto da janela. O Bico de lacre ao contrario do que se imaginava, voou somente até o peitoril, e ali ficou olhando para mim e para minha neta. De novo como a cerca de sessenta anos atrás, ouvi aquela pequena voz:

- Obrigado, vim lhe agradecer pelo meu antepassado! Disse a pequena voz.

- Vovô! Ele falou, ele falou! Gritou minha menina.

- Você ouviu? A emoção tomou meu coração. Ali eu entendi tudo. Aquele era um descendente do velho “azulzinho”. Minha netinha também o ouviu agradecer. Parecia um sonho, mas era pura realidade. Em seguida o pequeno pássaro falante ainda disse:

- Vejo que também podes voar.

Notei que os pequeninos olhos do passarinho apontavam para o computador. Então entendi o que ele quis dizer. Na tela estava o Google Earth, minha brincadeira favorita, navegar sobre as imagens de satélite de bairros, cidades e países. Sim ele estava certo, agora eu podia “voar”, ver tudo lá de cima, visitar lugares novos e voltar a ver lugares antigos e suas mudanças. Eu podia brincar no céu, como fazia o velho “azulzinho”.

Na janela a pequena ave saiu voando para longe. Ainda tive tempo de vê-la rodopiar no ar, eu e minha neta acenamos para ele.

- Adeus pequeno amigo! Falamos.

Vendo a tristeza no rosto da menina, Peguei-a no colo e mostrei no computador onde eu morava quando menino, onde eu brincava, pescava, soltava pipa e contei pra ela a história de um pássaro azul que conseguiu fugir das mãos do maior caçador de pássaros: Ivan o terrível.



Dedicado ao meu sogro e amigo: Ivan Santos da Silva

Feliz Aniversário!

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