quarta-feira, 17 de março de 2010

Os Tolos dos Tolos


Antes de iniciar sua rotineira palestra semanal o Pastor Euzébio fora surpreendido com uma ligação no seu celular, sua menina estava em crise e havia sido levada as pressas ao hospital. Pensou consigo mesmo sobre a maldição daquela estúpida doença que maltratava tão indefesa criança e que era um segredo de sua família. Câncer no sangue, mais conhecido como Leucemia era o inferno vivido pela pequena caçula. Digeriu a nojenta revolta dentro de seu peito, respirou fundo e como se tivesse mandíbulas de pedra abriu um sorriso mecânico para as centenas de fiéis daquele auditório.

O co-fundador da Igreja Céu na Terra há muito já abandonara o que aqueles pobres trouxas conheciam como fé. Não sentia nenhuma ponta de sentimento em relação àquela gente, via ali seu ganha pão e nada mais que isso. Negócios era sua religião e aquele negócio possibilitava à sua filha os melhores hospitais, médicos e remédios. Antes de começar ainda fingiu mentalizar uma espécie de inspiração para iniciar seu sermão. Sempre fazia isso, e sempre pensava nessas horas na sua família e na sua frágil menina.

Tinha uma oratória fantástica, jogava as palavras no ar como se fossem pássaros soltos que sempre encontravam o ombro perfeito de algum ouvinte desesperado por algum motivo. Suas citações bíblicas ou inventadas eram cirurgicamente depositadas nos corações e mentes daquele povo humilde, sedento e cheio de culpas. Rasgava o silêncio com frases empanzinadas de uma eloqüência feroz. Era sem duvida uma espécie de ilusionista. Transformava desespero em esperança.

Dali de cima do palco observava seus seguidores, gente feia, mal vestida em sua maioria. O cheiro da ignorância era tão forte que às vezes parecia ser fumegante, parecia sair daquelas cabeças imbecis como fumaça. Sempre “brincava” consigo mesmo procurando dentre a multidão os seus comparsas. Lá estava o velho Raimundo e sua falsa paralisia, na segunda fila percebeu Dona Zilda e sua teatral dor nas costas, ainda tinha mais três que estavam escondidos no meio daquela gente. Conduzir uma Igreja como a Igreja Céu na Terra, requer muito trabalho, afinal de contas é necessário ter uma série de cuidados com os atos teatrais. É preciso uma equipe grande, bem treinada e muita organização para que não se exponha furos entre uma cidade e outra. Uma constante metamorfose nas pessoas, nas enfermidades e nos atos exige uma pesada gestão de logísticas e muita criatividade. Não era a toa que Euzébio pouco ligava aqueles que na mídia geral o chamavam de canastrão, o que lhe irritava mesmo era quando alguém o associava a vadiagem.

Euzébio as vezes era surpreendido por algum fiel verdadeiro, que também subia ao palco e pedia alguma espécie de graça. Pensava ele: Além dos tolos ainda existem os picaretas que aqui sobem com um problema estupidamente inventado e saem pulando curados. Ele tentava imaginar o que queriam ou ganhavam essas bestas que por vontade própria colaboravam com toda aquela farsa através de suas próprias mentiras. Era o que ele chamava de Tolos dos Tolos, pois aqueles indiretamente trabalhavam de graça para ele e sua igreja.

Pois logo no início de sua palestra o Pastor foi surpreendido pelo que parecia ser um desses. O homem que sentava no meio do auditório levantou os braços e disse precisar de algo. Era um homem ligeiramente gordo, calvo e com grossos óculos que escondiam sob pesadas lentes um par de olhos muito azuis. O carismático pregador pediu então para que o homem levantasse da cadeira e viesse até o tablado.

- O que o senhor precisa? Perguntou Euzébio.

- Preciso de água, pois estou com sede.

Muitos caíram no riso. Era surpreendente que um vivente provocasse a pausa de uma palestra para pedir um copo de água. Euzébio dissimulando certa irritação pediu para suas ajudantes que dessem um pouco de água ao gordo. Ao receber o copo nas mãos o homem olhou nos olhos do Pastor e disse em voz baixa onde só os dois pudessem ouvir:

- Diga a verdade, caia de joelhos e sua filha estará livre do mal que lhe aflige.

O Pastor sentiu seus joelhos estremecer, uma corrente de seu sangue correu-lhe por todas as veias como lavas de um vulcão prestes a explodir. Precisou até mesmo fincar a mão no apoio de livros que estava ao seu lado diante de um leve desequilíbrio. Disfarçadamente representou estar com calor e afrouxou o seu colarinho. Olhou ao redor e viu que o auditório estava no mais ensurdecedor silêncio. Na sua cabeça latejava o que há muito tempo ele nem lembrava um dia sentir, remorso. Ficou ali por segundos e todo aquele momento pareceu horas. O homem sem ao menos provar da água colocou o copo sobre o apoio de livros. Euzébio com certo esforço perguntou em voz baixa:

- Quem é você?

- Sou aquele que cura os Tolos dos Tolos.

Após dizer isso, deu as costas e saiu caminhando até a porta, deixando o salão sem olhar para trás.

Euzébio ficou estático olhando para a porta. Olhou nos olhos dos fiéis ignorantes e como se alguém batesse com um bastão nas suas pernas caiu pesadamente de joelhos no palco. Sob um enchente de lágrimas gritou com todas as forças:

- Perdoem-me! Sou um mentiroso. Essa igreja é um instrumento falso. Perdoem-me por desprezar sua fé.

Aos poucos o burburinho foi tomando conta da multidão. Gritos, insultos e revolta começaram a ecoar. O tumulto tomava forma através de cadeiras quebradas e palavras exaltadas. Nisso o celular do pastor vibra e ele atende rápido. Era sua mulher que aos gritos dizia sobre um milagre. A filha estava totalmente curada da Leucemia. Uma lágrima do palestrante cai dentro do copo sobre o apoio. Ele observa o copo. O que havia ali não era mais água. Nesse instante alguém mais violento ergue uma cadeira e pelas costas bate covardemente no pastor. Um golpe certeiro, um golpe forte demais, Euzébio cambaleia tenta apoio, mas apenas cai derrubando o suporte e o copo. Seu corpo cai abruptamente do palco ficando inerte no assoalho. Seu sangue surge misturando-se a uma pequena poça de vinho.

quarta-feira, 10 de março de 2010

O Pescador de Ilusões

Todos os dias ao nascer do sol, o pescador atravessava uma colina, adentrava um jardim de girassóis, vencia um aglomerado de grandes rochas e se aconchegava num pequeno canto de frente a um bucólico riacho. Ali olhando a água gelada, com arbustos e pequenas árvores na outra margem, ele lançava sua linha e aguardava pelos peixes. Assim por algumas horas ficava o pequeno homem. Por toda a estação essa foi sua rotina, esse foi o seu cotidiano.

Certa vez ao lançar a isca uma luz brilhante surgiu de baixo da água. O homem curioso e assustado apertou os olhos para melhor ver. A luz então subiu mais forte e se transformou numa linda moça com cabelos negros e pele extremamente clara. O homem pensou estar sonhando e com a voz tremula perguntou:

- Quem é você?

A brilhante aparição com os olhos mais verdes que se poderia imaginar disse com uma voz doce e agradável.

- Sou sua filha e meu nome é Felicidade.

O homem sem entender o que ela queria dizer, caiu de joelhos e sentiu seus olhos cheios de água. Então tentando ainda manter a razão, ele retrucou:

- Eu não tenho filha.

- Sim. Eu sei disso, mas minha mãe mesmo assim me pariu. Eu sou a filha que você ainda não teve. Disse a bela garota.

O homem então fez a obvia pergunta:

- Mãe? Quem é sua mãe?

Nesse instante um barulho assustador, algo como um trovão eclodiu no lugar e a aparição deixou de existir. O homem assustado e caído ficou apenas ouvindo o barulho do riacho. Era impossível estancar as lágrimas de seus olhos, pois ele já sabia muito bem que aquilo só poderia ser loucura. Uma loucura advinda de seu maior desejo.

Naquele dia ele voltou mais cedo pra sua casa. Cabana modesta com assentos de madeira velha e redes de cor crua. Esquentou, no fogão a lenha, um bocado de água com intenção de fazer um chá. Preparou a humilde mesa com duas canecas de barro encerado e um pedaço de bolo de cenoura, encheu o bule com água fumegante. Olhou para o velho relógio em cima de outro móvel e expirou impacientemente. Estava esperando a mulher, queria lhe contar o fenômeno do riacho. Sua dúvida era como contaria o ocorrido, se como fosse um sonho ou uma milagrosa aparição. Ele estava ansioso, sabia que a sua companheira o ajudaria a entender o que havia acontecido.

A esposa, naquele dia estava atrasada, pois geralmente no entardecer ela já havia chego do cansativo trabalho. Ela vendia uns artefatos de tecido numa vila próxima. Já preocupado o homem resolveu ir de encontro à mulher, estivesse ela onde estivesse. Pegou o casaco de lona de carteiro e mesmo assim ao sair sentiu um frio agudo tomando-lhe as costelas. A casa ficava afastada, no centro do bosque, umas duas milhas da primeira estrada de terra batida. Foi quando alcançou essa estrada e vendo o cair da noite que o homem começou a sentir bem mais do que preocupação com sua mulher. O medo estava agora com as mãos em seus ombros. O lugar ermo e gelado lhe cochichava más intuições. O homem estava começando a entrar em pânico. Chegou até o vilarejo e não demorou a observar que a praça onde a esposa costumava usar para suas vendas estava totalmente vazia. Bastante preocupado olhou em volta na procura de alguém. Viu apenas um senhor com pele vermelha e olhos amendoados.

- Senhor, por acaso não esteve aqui hoje uma mulher vendendo algumas bugigangas?

O homem com aparência indígena disse-lhe

- O que procuras é o que procuras?

- Procuro minha esposa

- O que queres com sua mulher?

- Preciso dela pra poder lhe contar algo.

- Então não precisas dela. Precisas de alguém que te escute. Por que não contas para mim?

- Você é um estranho.

- Não, eu não sou estranho. Sou mais íntimo do que possas imaginar. Meu nome é Medo.

O homem desconcertado ficou em silêncio. Quando pensou em retrucar e dizer que antes de tudo queria apenas que a mulher ali estivesse, viu que o índio havia sumido.

A verdade é que aquilo tinha sido mais uma aparição. Duas aparições no mesmo dia. A menina e agora um velho índio. O homem já começava a acreditar que talvez estivesse enlouquecendo. Sentou na calçada e começou a chorar. Naquele instante ele admitia que o pior pudesse ter acontecido a sua querida mulher. Talvez algum assassino ou cruel ladrão.

Desesperado e de forma instintiva o angustiado homem resolveu voltar ao riacho mesmo no meio da escura noite. Titubeou para atravessar as rochas escorregadias na penumbra, mas mesmo tremendo conseguiu chegar às margens do riacho. Com a boca aberta observou que as águas escuras corriam de forma avassaladora numa incrível correnteza. O riacho que de dia parecia um espelho, agora se transformara num violento e assustador rio.

Foi observando aquela torrente que percebeu mais a longe uma mulher acenando com os braços como se estivesse afogando. Correu atrapalhado subindo pela margem chegando até um penhasco de mais de dez metros de altura. Lá de cima reconheceu a própria mulher. Ela gritava socorro. Num ato compulsivo atirou-se lá de cima num mergulho improvável. As águas turvas pareciam um universo de mãos a empurrá-lo para o fundo e para a morte. Seus braços se debatiam como tentáculos inúteis, a força daquela natureza foi engolindo pouco a pouco aquele frágil corpo. Aos poucos foi se entregando, não conseguia mais nem ver a mulher. Já submerso sob a parca luz do luar conseguiu ver muitos peixes, muitos mais do que imaginava que houvesse naquele outrora riacho calmo das pescarias. Poderia até mesmo pega-los fácil esticando os braços. Os peixes estavam ali como uvas que se apanha numa parreira.

...

A mulher chorava abraçada a outra que talvez fosse uma vizinha. Os policiais faziam as mesmas perguntas rotineiras em casos como aquele, onde o mais provável teria sido o suicídio. Ela respondia entre lágrimas e soluços.

- Mas a senhora não observou nenhum comportamento estranho de seu marido?

A mulher nada disse. Apenas ficou olhando pela janela, lembrando daquela manhã quando ele saia para pescar.

...

- Já vai pra vida mansa de novo?

O Homem nada respondeu.

- Você ainda tem juventude, deveria trabalhar. Essas suas pescarias não servem pra nada.

A mulher parecia irritada, e continuou dizendo:

- Eu tenho que ir à praça e você fica nessa inútil pescaria. Você deveria buscar a felicidade, deveria vencer os seus medos. Ficar sentado esperando pelos peixes é fugir da realidade da vida. Você ainda é novo. Poderíamos ter melhores condições.

Sem olhar para trás o homem apenas deu uma parada e depois continuou rumo à porta e a pescaria. Ele sabia que ela tinha certa dose de razão. Ele sabia que dentro do seu coração havia infelicidade. Ele sabia que não passava de um pescador de ilusões.