Antes de iniciar sua rotineira palestra semanal o Pastor Euzébio fora surpreendido com uma ligação no seu celular, sua menina estava em crise e havia sido levada as pressas ao hospital. Pensou consigo mesmo sobre a maldição daquela estúpida doença que maltratava tão indefesa criança e que era um segredo de sua família. Câncer no sangue, mais conhecido como Leucemia era o inferno vivido pela pequena caçula. Digeriu a nojenta revolta dentro de seu peito, respirou fundo e como se tivesse mandíbulas de pedra abriu um sorriso mecânico para as centenas de fiéis daquele auditório.
O co-fundador da Igreja Céu na Terra há muito já abandonara o que aqueles pobres trouxas conheciam como fé. Não sentia nenhuma ponta de sentimento em relação àquela gente, via ali seu ganha pão e nada mais que isso. Negócios era sua religião e aquele negócio possibilitava à sua filha os melhores hospitais, médicos e remédios. Antes de começar ainda fingiu mentalizar uma espécie de inspiração para iniciar seu sermão. Sempre fazia isso, e sempre pensava nessas horas na sua família e na sua frágil menina.
Tinha uma oratória fantástica, jogava as palavras no ar como se fossem pássaros soltos que sempre encontravam o ombro perfeito de algum ouvinte desesperado por algum motivo. Suas citações bíblicas ou inventadas eram cirurgicamente depositadas nos corações e mentes daquele povo humilde, sedento e cheio de culpas. Rasgava o silêncio com frases empanzinadas de uma eloqüência feroz. Era sem duvida uma espécie de ilusionista. Transformava desespero em esperança.
Dali de cima do palco observava seus seguidores, gente feia, mal vestida em sua maioria. O cheiro da ignorância era tão forte que às vezes parecia ser fumegante, parecia sair daquelas cabeças imbecis como fumaça. Sempre “brincava” consigo mesmo procurando dentre a multidão os seus comparsas. Lá estava o velho Raimundo e sua falsa paralisia, na segunda fila percebeu Dona Zilda e sua teatral dor nas costas, ainda tinha mais três que estavam escondidos no meio daquela gente. Conduzir uma Igreja como a Igreja Céu na Terra, requer muito trabalho, afinal de contas é necessário ter uma série de cuidados com os atos teatrais. É preciso uma equipe grande, bem treinada e muita organização para que não se exponha furos entre uma cidade e outra. Uma constante metamorfose nas pessoas, nas enfermidades e nos atos exige uma pesada gestão de logísticas e muita criatividade. Não era a toa que Euzébio pouco ligava aqueles que na mídia geral o chamavam de canastrão, o que lhe irritava mesmo era quando alguém o associava a vadiagem.
Euzébio as vezes era surpreendido por algum fiel verdadeiro, que também subia ao palco e pedia alguma espécie de graça. Pensava ele: Além dos tolos ainda existem os picaretas que aqui sobem com um problema estupidamente inventado e saem pulando curados. Ele tentava imaginar o que queriam ou ganhavam essas bestas que por vontade própria colaboravam com toda aquela farsa através de suas próprias mentiras. Era o que ele chamava de Tolos dos Tolos, pois aqueles indiretamente trabalhavam de graça para ele e sua igreja.
Pois logo no início de sua palestra o Pastor foi surpreendido pelo que parecia ser um desses. O homem que sentava no meio do auditório levantou os braços e disse precisar de algo. Era um homem ligeiramente gordo, calvo e com grossos óculos que escondiam sob pesadas lentes um par de olhos muito azuis. O carismático pregador pediu então para que o homem levantasse da cadeira e viesse até o tablado.
- O que o senhor precisa? Perguntou Euzébio.
- Preciso de água, pois estou com sede.
Muitos caíram no riso. Era surpreendente que um vivente provocasse a pausa de uma palestra para pedir um copo de água. Euzébio dissimulando certa irritação pediu para suas ajudantes que dessem um pouco de água ao gordo. Ao receber o copo nas mãos o homem olhou nos olhos do Pastor e disse em voz baixa onde só os dois pudessem ouvir:
- Diga a verdade, caia de joelhos e sua filha estará livre do mal que lhe aflige.
O Pastor sentiu seus joelhos estremecer, uma corrente de seu sangue correu-lhe por todas as veias como lavas de um vulcão prestes a explodir. Precisou até mesmo fincar a mão no apoio de livros que estava ao seu lado diante de um leve desequilíbrio. Disfarçadamente representou estar com calor e afrouxou o seu colarinho. Olhou ao redor e viu que o auditório estava no mais ensurdecedor silêncio. Na sua cabeça latejava o que há muito tempo ele nem lembrava um dia sentir, remorso. Ficou ali por segundos e todo aquele momento pareceu horas. O homem sem ao menos provar da água colocou o copo sobre o apoio de livros. Euzébio com certo esforço perguntou em voz baixa:
- Quem é você?
- Sou aquele que cura os Tolos dos Tolos.
Após dizer isso, deu as costas e saiu caminhando até a porta, deixando o salão sem olhar para trás.
Euzébio ficou estático olhando para a porta. Olhou nos olhos dos fiéis ignorantes e como se alguém batesse com um bastão nas suas pernas caiu pesadamente de joelhos no palco. Sob um enchente de lágrimas gritou com todas as forças:
- Perdoem-me! Sou um mentiroso. Essa igreja é um instrumento falso. Perdoem-me por desprezar sua fé.
Aos poucos o burburinho foi tomando conta da multidão. Gritos, insultos e revolta começaram a ecoar. O tumulto tomava forma através de cadeiras quebradas e palavras exaltadas. Nisso o celular do pastor vibra e ele atende rápido. Era sua mulher que aos gritos dizia sobre um milagre. A filha estava totalmente curada da Leucemia. Uma lágrima do palestrante cai dentro do copo sobre o apoio. Ele observa o copo. O que havia ali não era mais água. Nesse instante alguém mais violento ergue uma cadeira e pelas costas bate covardemente no pastor. Um golpe certeiro, um golpe forte demais, Euzébio cambaleia tenta apoio, mas apenas cai derrubando o suporte e o copo. Seu corpo cai abruptamente do palco ficando inerte no assoalho. Seu sangue surge misturando-se a uma pequena poça de vinho.