quarta-feira, 10 de março de 2010

O Pescador de Ilusões

Todos os dias ao nascer do sol, o pescador atravessava uma colina, adentrava um jardim de girassóis, vencia um aglomerado de grandes rochas e se aconchegava num pequeno canto de frente a um bucólico riacho. Ali olhando a água gelada, com arbustos e pequenas árvores na outra margem, ele lançava sua linha e aguardava pelos peixes. Assim por algumas horas ficava o pequeno homem. Por toda a estação essa foi sua rotina, esse foi o seu cotidiano.

Certa vez ao lançar a isca uma luz brilhante surgiu de baixo da água. O homem curioso e assustado apertou os olhos para melhor ver. A luz então subiu mais forte e se transformou numa linda moça com cabelos negros e pele extremamente clara. O homem pensou estar sonhando e com a voz tremula perguntou:

- Quem é você?

A brilhante aparição com os olhos mais verdes que se poderia imaginar disse com uma voz doce e agradável.

- Sou sua filha e meu nome é Felicidade.

O homem sem entender o que ela queria dizer, caiu de joelhos e sentiu seus olhos cheios de água. Então tentando ainda manter a razão, ele retrucou:

- Eu não tenho filha.

- Sim. Eu sei disso, mas minha mãe mesmo assim me pariu. Eu sou a filha que você ainda não teve. Disse a bela garota.

O homem então fez a obvia pergunta:

- Mãe? Quem é sua mãe?

Nesse instante um barulho assustador, algo como um trovão eclodiu no lugar e a aparição deixou de existir. O homem assustado e caído ficou apenas ouvindo o barulho do riacho. Era impossível estancar as lágrimas de seus olhos, pois ele já sabia muito bem que aquilo só poderia ser loucura. Uma loucura advinda de seu maior desejo.

Naquele dia ele voltou mais cedo pra sua casa. Cabana modesta com assentos de madeira velha e redes de cor crua. Esquentou, no fogão a lenha, um bocado de água com intenção de fazer um chá. Preparou a humilde mesa com duas canecas de barro encerado e um pedaço de bolo de cenoura, encheu o bule com água fumegante. Olhou para o velho relógio em cima de outro móvel e expirou impacientemente. Estava esperando a mulher, queria lhe contar o fenômeno do riacho. Sua dúvida era como contaria o ocorrido, se como fosse um sonho ou uma milagrosa aparição. Ele estava ansioso, sabia que a sua companheira o ajudaria a entender o que havia acontecido.

A esposa, naquele dia estava atrasada, pois geralmente no entardecer ela já havia chego do cansativo trabalho. Ela vendia uns artefatos de tecido numa vila próxima. Já preocupado o homem resolveu ir de encontro à mulher, estivesse ela onde estivesse. Pegou o casaco de lona de carteiro e mesmo assim ao sair sentiu um frio agudo tomando-lhe as costelas. A casa ficava afastada, no centro do bosque, umas duas milhas da primeira estrada de terra batida. Foi quando alcançou essa estrada e vendo o cair da noite que o homem começou a sentir bem mais do que preocupação com sua mulher. O medo estava agora com as mãos em seus ombros. O lugar ermo e gelado lhe cochichava más intuições. O homem estava começando a entrar em pânico. Chegou até o vilarejo e não demorou a observar que a praça onde a esposa costumava usar para suas vendas estava totalmente vazia. Bastante preocupado olhou em volta na procura de alguém. Viu apenas um senhor com pele vermelha e olhos amendoados.

- Senhor, por acaso não esteve aqui hoje uma mulher vendendo algumas bugigangas?

O homem com aparência indígena disse-lhe

- O que procuras é o que procuras?

- Procuro minha esposa

- O que queres com sua mulher?

- Preciso dela pra poder lhe contar algo.

- Então não precisas dela. Precisas de alguém que te escute. Por que não contas para mim?

- Você é um estranho.

- Não, eu não sou estranho. Sou mais íntimo do que possas imaginar. Meu nome é Medo.

O homem desconcertado ficou em silêncio. Quando pensou em retrucar e dizer que antes de tudo queria apenas que a mulher ali estivesse, viu que o índio havia sumido.

A verdade é que aquilo tinha sido mais uma aparição. Duas aparições no mesmo dia. A menina e agora um velho índio. O homem já começava a acreditar que talvez estivesse enlouquecendo. Sentou na calçada e começou a chorar. Naquele instante ele admitia que o pior pudesse ter acontecido a sua querida mulher. Talvez algum assassino ou cruel ladrão.

Desesperado e de forma instintiva o angustiado homem resolveu voltar ao riacho mesmo no meio da escura noite. Titubeou para atravessar as rochas escorregadias na penumbra, mas mesmo tremendo conseguiu chegar às margens do riacho. Com a boca aberta observou que as águas escuras corriam de forma avassaladora numa incrível correnteza. O riacho que de dia parecia um espelho, agora se transformara num violento e assustador rio.

Foi observando aquela torrente que percebeu mais a longe uma mulher acenando com os braços como se estivesse afogando. Correu atrapalhado subindo pela margem chegando até um penhasco de mais de dez metros de altura. Lá de cima reconheceu a própria mulher. Ela gritava socorro. Num ato compulsivo atirou-se lá de cima num mergulho improvável. As águas turvas pareciam um universo de mãos a empurrá-lo para o fundo e para a morte. Seus braços se debatiam como tentáculos inúteis, a força daquela natureza foi engolindo pouco a pouco aquele frágil corpo. Aos poucos foi se entregando, não conseguia mais nem ver a mulher. Já submerso sob a parca luz do luar conseguiu ver muitos peixes, muitos mais do que imaginava que houvesse naquele outrora riacho calmo das pescarias. Poderia até mesmo pega-los fácil esticando os braços. Os peixes estavam ali como uvas que se apanha numa parreira.

...

A mulher chorava abraçada a outra que talvez fosse uma vizinha. Os policiais faziam as mesmas perguntas rotineiras em casos como aquele, onde o mais provável teria sido o suicídio. Ela respondia entre lágrimas e soluços.

- Mas a senhora não observou nenhum comportamento estranho de seu marido?

A mulher nada disse. Apenas ficou olhando pela janela, lembrando daquela manhã quando ele saia para pescar.

...

- Já vai pra vida mansa de novo?

O Homem nada respondeu.

- Você ainda tem juventude, deveria trabalhar. Essas suas pescarias não servem pra nada.

A mulher parecia irritada, e continuou dizendo:

- Eu tenho que ir à praça e você fica nessa inútil pescaria. Você deveria buscar a felicidade, deveria vencer os seus medos. Ficar sentado esperando pelos peixes é fugir da realidade da vida. Você ainda é novo. Poderíamos ter melhores condições.

Sem olhar para trás o homem apenas deu uma parada e depois continuou rumo à porta e a pescaria. Ele sabia que ela tinha certa dose de razão. Ele sabia que dentro do seu coração havia infelicidade. Ele sabia que não passava de um pescador de ilusões.

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