sexta-feira, 12 de novembro de 2010

O Ateu e o Teísta


Fazia cerca de seis meses que Rubens havia assumido o cargo de gerente daquela grande empresa. Foram meses consagradores, o humilde rapaz do interior que outrora guardava cada tostão para os estudos na capital, finalmente estava sendo reconhecido por seu esforço frente a livros, cadernos e aulas. Porém o seu primeiro grande desafio parecia só agora dar as caras: Ele precisava por ordem da diretoria e sob o pretexto de desafogar os custos e melhorar os lucros demitir um funcionário.

Naquela tarde cinzenta, ele aguardava um tanto quanto ansioso, na sua sala, a chegada do empregado para poder transmitir a péssima noticia. O sujeito no caso era o Sr. Cristovão, um pai de família, mais precisamente duas filhas e com idade ainda longe da aposentadoria. Cristovão era um homem prestativo que jurava estar bem encaixado naquela firma. Trabalhava ali há quinze anos e era amigo do fundador: o já falecido Anastácio. Desde que o velho Anastácio tinha morrido há três anos, a empresa continuou sendo tocada pelos filhos e o empregado Cristovão foi aos poucos sendo substituído por mão de obra de terceiros. O Senhor Cristóvão sempre colaborou da melhor maneira possível com os jovens estagiários terceirizados, passando-lhes toda a rotina e entendendo estar fazendo o melhor, contribuindo com o futuro da empresa. Era um pobre inocente criando pequenas serpentes debaixo do próprio nariz.

Outra faceta reconhecidamente famosa do Sr Cristovão era sua devoção pelas palavras de Deus. Com suas palavras suaves, seu jeito colaborador, educado e sereno e sob sua camisa social sempre abotoada até a garganta, ele muitas vezes lembrava um pastor, padre ou qualquer outra entidade doutrinadora. O homem de fato era uma companhia calmante frente a qualquer situação de crise envolvendo seus colegas de trabalho. Todos adoravam trocar idéias com o “seu Cris” e sair daquelas conversas mais leves.

Frente a esse quadro, a situação de Rubens era mesmo crítica. Ele sabia das características do empregado, sabia de sua doçura, de sua história e do dissabor que teria em comunicar-lhe a ordem. Para agravar tudo, o homem ainda tinha sido um velho amigo de seu falecido pai.

Finalmente ele surgiu na porta:

- Olá Sr. Rubens em que posso ajudá-lo?

Rubens respirou fundo e pediu para que Cristovão sentasse. Rubens usou toda a retórica necessária, foi sereno, foi sincero, não deu muitas voltas até dizer exatamente o que precisava. Rubens de fato era preparado e tentou dar a apunhalada com o cuidado necessário para que não houvesse muito sangue derramado. Cristovão bem que tentou acorrentar a humanidade em seus ossos, porém seus olhos reveladores e inundados já transbordavam quando ele conseguiu titubear as primeiras palavras:

Falou de Deus, do amor dele, da sua família, da injustiça, da sua história, de tudo que pudesse usar como defesa. Era como um soldado ferido de morte escondendo-se atrás de escombros inúteis, e esperando o sangue esvair totalmente de seu corpo. Era como um cadáver falante, um zumbi de boca seca, numa fumegante sombra de medo, decepção e angustia.

Lucros? Lucros maiores? Então não estamos falando de prejuízo e sim de Lucros maiores? Repetia quase que histericamente. Eu lhe imploro pelo amor do criador, isso não vai lhe fazer bem. Meu jovem, você está pisando em cima de um homem de bem. Não faça isso. Por seu pai, meu amigo, por sua dignidade, por Deus. Cristovão desfiava todos seus argumentos, chegando ao ápice de cair de joelhos frente ao jovem gerente.

Rubens, logicamente estava transtornado, mas o fato de ser ateu desde sempre fazia com que as citações do agora desempregado não pesassem em nada. Ele lamentava pelo homem, mas ignorava completamente seus argumentos e sermão.

Depois de repetir umas tantas vezes a expressão pelo amor de Deus, o Sr. Cristovão foi abruptamente interrompido pelo rapaz que gritou:

- Eu sou ateu, Sr Cristovão! Deus pra mim não existe.

Um silêncio absurdo tomou conta da sala naquela fração de tempo. Sr Cristovão ajoelhado, levantou-se ajeitou a camisa social cor de canela, deu uma enxugada nos olhos deu as costas e saiu da sala.

Rubens ficou pensativo. Parecia que tinha acabado de lutar contra um urso, tamanho era seu desgaste.

...

No caminho para casa, Rubens só queria poder sentar no sofá e ver um pouco de programação infantil com sua pequena Larissa de cinco anos. Desde que tinha assumido o cargo, aquele com certeza tinha sido seu dia mais ingrato.

Estacionou seu recém adquirido C4 Pallas na garage e subiu o elevador já afrouxando a gravata.

Notou estranhamente que a porta estava destrancada. Nem deu três passos para dentro do apartamento e sentiu um gelado metal tocar-lhe a nuca. Mais a frente viu sua filhinha e sua mulher, amarradas e amordaçadas.

A voz que segurava a pistola falou:

- Ajoelhe-se.

Rubens reconheceu a voz.

- Pelo amor de Deus! Disse Rubens.

- Hoje você me ensinou que Ele não existe. Respondeu o homem.

Rubens ainda cruzou com os olhinhos aterrorizados da sua pequena. Naquele instante sem saber, ele começou uma desesperada oração.

2 comentários:

Profª Rita disse...

Muito bom, mas não achei o "fumegante". Eh eh eh...Tem?

Vitor P Jr disse...

hahaha

sim, tem sim. Não vou dizer onde. O melhor fumegante é aquele que nem se percebe :)

obrigado pelos seus comentários!