quarta-feira, 19 de agosto de 2009

O velho e a sarça


Quando vi o bolo de ameixa e aquela cantoria, veio à minha cabeça aquele velho homem que certa vez conheci num asilo de São Vincent. Acho que era inverno. Lembro perfeitamente que olhando para a lareira acesa, o ancião falou que tinha 95 anos e que viveria muito mais. Eu e meus amigos do colégio achamos graça da segurança dele. Com muita eloquência o experiente homem nos disse com todas as letras que sabia o segredo da vida eterna.
Começou dizendo que foi aos 17 anos que descobriu o segredo. Vivia apavorado com a peste que varria as casas naqueles tempos. Foram nesses terríveis anos que perdeu irmãos, pai e mãe. Na sua história o grande momento foi quando um arbusto em chamas conversou com ele. Obviamente que eu e meus amigos, todos muito gozadores, mas educados, fizemos de conta que não sabíamos que árvores pegando fogo não são lá muito originais no que diz respeito a mensagens de Deus. De qualquer forma o simpático e falante contador de histórias nos confessou naquele dia o grande segredo que guardava até então.
O vegetal, que servia de instrumento para a voz de um anjo ou do próprio Deus, disse-lhe que não temesse a morte. Ele, o ouvinte, seria o último homem a viver na terra. O mundo foi criado para seu deleite. As pessoas, absolutamente todas as pessoas do mundo haviam nascido para que ele pudesse conhecê-las para que ele pudesse amá-las ou não.
A pequena e fumegante acácia ainda continuou dizendo que os animais no mundo haviam nascido para alimentá-lo, ou diverti-lo, ou até mordê-lo. Se existia um rio com água clara e limpa, esse rio com certeza seria para saciar sua sede e irrigar tudo o mais que fosse necessário para sua vida.
Aquela moita ainda explicou que obviamente todas as coisas criadas especialmente para ele, poderiam e até deveriam ser utilizadas por outros. Afinal de contas esses outros também precisavam levar uma vida para satisfazer ou enriquecer a vida dele.
O homem então disse que perguntou sobre sua mãe, seu pai e irmãos que a peste havia levado. A planta com voz firme ponderou que apesar do mundo estar girando ao redor daquele rapaz, isso não significaria um mar de felicidade ou um guarda chuva de proteção. A voz ainda completou dizendo que o universo havia sido criado para aquele jovem e que cabia a ele saber desfrutar desse grande presente. Mesmo assim o rapaz questionou sobre a morte desses seus entes queridos. A resposta novamente foi seca. O mundo foi criado especificamente para você. Todos ao seu redor morrerão. Você viverá para sempre.
Foi assim com essa história que o velho nos distraiu naquela visita àquele soturno asilo. Éramos jovens e tínhamos entre 19 e 21 anos. No ano seguinte ficamos sabendo numa reunião do grêmio estudantil que o folclórico “homem eterno” havia falecido. Foi uma sensação diferente, não conhecíamos aquela figura direito, mas a história dele nos cativou e nos entristeceu a sua morte. A encarregada que trabalhava naquela casa para idosos enviou-me uma carta confirmando o ocorrido e disse que um pequeno pacote havia sido deixado para nossa turma. Ninguém se preocupou em ir lá ver do que se tratava. Ninguém exceto eu.
O pacote feito de papel pardo e encerado estava bem amarrado. Dentro um caderno velho, uma espécie de diário. Tinha cerca de 200 folhas e iniciava com a frase: Não sei quando nasci, mas sei que nunca morrerei...
Foi nesse diário que o segredo foi realmente decifrado. Foi ali que entendi que morremos sim, mas morremos para os outros. Somos todos: Vidas paralelas. A sarça ardente havia contado ao homem que ninguém experimentaria a própria morte e todas as outras mortes seriam sentidas. Se alguém que você conhece morreu, pode ter certeza que esse alguém na verdade vive e que talvez você tenha morrido na vida dessa pessoa. Cada um leva um mundo dentro de si. O caderno ainda explicava que muitas vezes quando escapamos de uma emboscada da morte, como doenças ou acidentes, talvez ali tenha sido o fim da nossa linha no mundo de outra pessoa. Possivelmente um tio seu chora agora lembrando sua morte ao cair de um barranco quando criança. A princípio achei graça no absurdo de tal colocação.
Hoje, oitenta anos depois, quando todos os meus parentes já se foram e meus descendentes já me esqueceram, aqui sentado nessa cadeira e vendo aquelas crianças com aquele bolo de ameixa e aquela cantoria para o companheiro do quarto 14, começo a desconfiar. Talvez o velho tivesse razão.

2 comentários:

Profª Rita disse...

Que emblemático! Que que é emblemático mesmo? Mas, sei lá, essa coisa de vida paralela... é algo assim, digamos, emblemático!

Vitor P Jr disse...

Valeu!!

Eu estava com esse argumento para uma historinha. Eu tinha que fazer de alguma maneira.

Fiquei meio decepcionado com a confusão. Achei muito "patropi".

A palavra emblemático salvou tudo. Considero um grande elogio.

obrigado.