quinta-feira, 24 de setembro de 2009

O Novelo

"O conto a seguir só terá sentido para quem ficar 2 horas ou mais num engarrafamento"

Sara foi despertando lentamente ouvindo o burburinho do resto do pessoal. O pai ao lado olhava distraidamente pela janela.

- Pai! O que está havendo ali?

- Nada demais filha. É o vendedor de biscoitos, que faz tempo que não aparecia.

A menina de cinco anos olhou de novo. Observou Dona Marta, o velho Durval. Estavam tentando convencer o vendedor a lhes arrumar uns biscoitinhos a mais. Na verdade o magrelo Odair não deveria ser exatamente chamado de vendedor. Naquele mundo essa função já não existia mais, tudo era na base da troca. O dinheiro há certo tempo já havia parado de circular. Aliás, não só o dinheiro, mas absolutamente tudo estava parado.

Desde o fenômeno Novelo o mundo era outro. Odair era o fornecedor de biscoitos daquela quadra. Chamá-lo de vendedor era só um vício cultural trazido de outras épocas. Alguns dizem que a Kombi dele ainda tem gasolina, mas isso provavelmente não passava de mais uma das antigas lendas urbanas. Com a saída do biscoiteiro todos foram voltando aos seus lugares. Dona Marta lá no fundo, Durval perto da catraca, Zezé preferiu ficar de pé fazendo alongamento perto da porta.

Alguém acabou falando mais alto lá atrás:

- Espero que o Joel dos frangos passe aqui na semana que vem. Logo será mais um dia do Novelo e poderíamos comer um delicioso frango assado.

- Pai, nesse dia do Novelo será que o senhor consegue um brinquedo pra mim? Perguntou a pequena Sara.

O homem no alto de seus 38 anos procurou a mulher. Ela estava demorando desde que foi ao banheiro no ônibus do lado. Finalmente ela surgiu na porta.

- Que demora. Disse ele.

- Tinha fila no banheiro. Respondeu a mulher.

- Temos sorte de ter um ônibus com banheiro perto do nosso. Tem gente que anda quadras pra encontrar um desse tipo, ou então se alivia por ai. Completou a mulher.

- Mãe! Chamou a menina

- Sim, querida.

- No dia do Novelo, posso ganhar um brinquedo?

- Claro filha. O Papai Novelo deve aparecer aqui nos próximos dias.

Papai Novelo era um senhor motorista de uma velha caminhonete Rural. Ele tinha muito jeito com crianças e preparava balas, além de fazer brinquedos de madeira. A mulher então suspirou e disse:

- Quem diria. Semana que vem já é dia do Novelo de novo. Passa tão rápido. Parece que foi ontem, eu peguei esse ônibus pra ir pro colégio.

O homem olhando o semáforo apagado e enferrujado falou:

- É querida. Já se vão oito anos desde o fenômeno. Lembro quando a pequena TV do falecido Lírio ainda funcionava e noticiou em primeira mão. “O novelo está fechado, conforme previam os especialistas, hoje é o dia do colapso final”. Foi a partir disso que todos nós começamos a chamar tudo isso de Era do Novelo.

- Papai, eu adoro quando você conta coisas do mundo lá fora. Falou sorrindo a menina.

- Era maravilhoso minha filha! Já contei que eu morava num prédio onde havia uma grande praça vizinha? E que sempre, eu e meus irmãos brincavamos nessa praça? Saudade dos meus irmãos!

- Sim pai, o senhor dizia que até em árvores subia. E eu nunca nem vi uma árvore. Disse a menina baixando os olhos.

O pai vendo certo ar de tristeza na menina comentou:

- Filha. Nós não podemos desanimar. O Novelo apesar de tudo, me fez conhecer tua mãe e me deu esse presente maravilhoso que é você. Sua chegada aqui no nosso ônibus foi uma emoção que ninguém aqui vai esquecer. Não é Dona Cecília?

A parteira olhou de sua cadeira com um grande sorriso no rosto e um copo fumegante de café que acabara de pegar na perua vizinha.

Sara sentiu-se melhor. Todos ali a adoravam.

A menina fechou os olhos por um momento e pediu baixinho pro Papai Novelo, pra que um dia ela pudesse viver todas as coisas que o papai contava pra ela.

Alguém lá na frente gritou histericamente. Todos foram ver. Era o Negro Ataulfo o motorista.

- Eu vi! Eu vi! A sinaleira piscou rapidamente a luz verde.

Todos ficaram atônitos com aquilo. Na verdade eles sabiam que não se tratava de um sinal fechado ou aberto resolver aquela situação. Simplesmente as estradas pararam. Ninguém no mundo nunca mais encontraria a “ponta do barbante”. Todos sabiam que mesmo que não houvesse aquele caótico engarrafamento, nenhum carro da redondeza teria combustível pra andar. Já passara quase uma década desde o começo daquilo. Uns se aventuraram a pé, outros chegaram pra ficar, tiveram pessoas que Tomaz, o coveiro, levou, tiveram uns que até saiam e depois de meses voltavam. A verdade é que aquelas pessoas aos poucos foram se acostumando, se amoldando e se transformando naquilo que eram agora. Provavelmente muitos ali nem saberiam mais viver de outro jeito.

Mas mesmo que aquele lampejo verde fosse um delírio do cansado motorista, aquilo foi recebido como um sinal. Talvez novos tempos estivessem surgindo. Os passageiros continuaram olhando boquiabertos para o velho semáforo quebrado. Alguns nem lembravam mais de como era a vida antes.

Sara com os olhos arregalados, agradecia em pensamento para Papai Novelo.

sexta-feira, 18 de setembro de 2009

A Máquina do Tempo


O despertador finalmente disparou. Joni já havia acordado pelo menos há 2 horas e apenas aguardava o toque do relógio para poder iniciar o dia mais esperado de sua vida.

Desde que começou a trabalhar há 17 anos como bolsista no Laboratório de Ciências e Estudos Neuro-Físicos da conceituada Universidade de São Genaro, o estudioso estava muito ansioso por aquela ocasião. Ele agora já não era mais bolsista ou estagiário, e sim um respeitado pesquisador formado em Engenharia Mecânica e Física com especialização em Protótipos para experimentos encéfalo- cirúrgicos. Sim Joni era um desses tipos: Cientista Maluco.

Aquela noite de insônia parcial tinha com certeza toda razão de ser. Joni desde pequeno era um menino diferente, sua infância nunca acompanhou o padrão dos amigos da escola ou da vizinhança. Se todos gostavam de brincar com peões e correr com pneus de bicicletas equilibrados por varetas, Joni ficava lendo ou tentando entender o comportamento físico destes brinquedos. Ele, como seus tios diziam , havia nascido para os livros e cadernos. Quando adolescente ao invés de sair para curtir garotas, bebidas e conversas sem pé nem cabeça sob gotículas de orvalho, ele apenas ficava em seu quarto envolvido com pequenas experiências, tentando entender as particularidades da natureza e as possibilidades de intervenções.

O que ninguém sabia era que o prodígio depois de um tempo, no fundo no fundo, estava arrependido de ter feito tudo que tinha feito. Joni há certos anos havia cansado de toda aquela sede de saber. Sua verve científica esmoreceu, e mesmo que de forma tardia, aflorou em sua humanidade uma vontade de apenas viver os dias e as noites . Ele sucumbiu ao lugar comum e pior ainda, estava cheio de remorso por tudo aquilo que deixou pra trás.

Certa vez, aos vinte e seis anos de idade, ao ler o texto de um poeta sul americano, Joni se convenceu do quanto estava perdendo da vida. Toda sua infância e juventude haviam voado como as pipas derrotadas nos festivais de outrora e que ele nunca estava lá pra ver. Sua adolescência fora enclausurada em tardes e noites de estudo e exercícios. O poema dizia sobre aproveitar a vida, arriscar mais, mergulhar fundo num oceano de coisas antes consideradas frivolidades. Joni ficou muito deprimido, pois aquilo magoou seu coração como a ponta fumegante do punhal incandescente de um ferreiro num pedaço de isopor de baixa densidade. Joni desde aqueles dias havia tomado uma decisão, ele repararia seu maior erro. Foi essa obsessão que o fez desenvolver em segredo um dispositivo de viagem temporal. Uma máquina do tempo.

A engenhoca consistia numa imensa cápsula com uma câmara interna ligada por um eixo numa das extremidades. Algo como uma máquina de tomografia onde o corpo do paciente poderia girar livremente. Na cabeça uma espécie de capacete com diversos eletrodos lembravam facilmente os filmes B sobre Dr. Frankenstein e a criatura. A idéia era atingir velocidade altíssima de giro do corpo e do cérebro combinando com impulsos eletromagnéticos no crânio, fazendo assim uma reação psico- física onde baseada em teorias de relatividade do espaço com o tempo provocaria um deslocamento temporal. Tudo foi estudado a fundo pelo obcecado físico.

Joni já havia testado com pequenos camundongos e estes sumiam como mágica depois do experimento. Todos sabem que a coragem é a mãe do progresso. O que seria de um cientista se esse não tivesse coragem? No entanto a coragem tem um limite e após essa linha ela muda de nome, ela passa a atender como Loucura. Joni já havia há tempos se despedido da coragem. O mundo dele agora era outro.

Ao chegar ao laboratório, viu o mesmo pessoal de sempre. Cumprimentou a todos e sem gerar qualquer desconfiança foi caminhando até a sala para experimentos. Nos últimos meses somente ele tinha as chaves daquele espaço e sob o motivo de confidencialidade mantinha tudo que ali era feito no mais profundo segredo. Ninguém sabia de sua estranha e insólita experiência. Algo, no entanto foi diferente naquele dia. Um senhor que Joni nunca tinha visto no laboratório, de cabelo grisalho e jaleco azul claro estava fazendo a limpeza dos corredores e antes do cientista adentrar a sala, falou:

- Vejo que vocês têm algumas cobaias por aqui!

Joni parou um pouco e então se virou para o locutor. O Homem com sobrancelhas grossas como uma taturana e olhar emblemático ainda emendou:

- Você já parou para olhar para esses ratinhos que “brincam” nessa roda?

O velho apontava uma pequena gaiola sobre um balcão onde um camundongo corria sem sair do lugar fazendo girar um cilindro. Joni olhou aquilo e perguntou:

- O que o senhor quer dizer? Desde quando o senhor trabalha aqui na limpeza?

O velho deu um sorrisinho e finalizou:

- Veja o ratinho rodando sem sair do lugar. Ele quer sair da gaiola e não consegue. Só você pode soltá-lo. Só algo maior pode fazê-lo livre.

Joni olhou de novo o pequeno roedor, pensou um pouco e concluiu da perda de tempo daquela conversa. Entrou e fechou a porta à suas costas.

Depois de diversos e minuciosos cálculos, Joni preparou a velocidade, o ritmo e programou o número de giros da câmara interna da inovadora máquina. Segundo seu entendimento ele voltaria algumas horas no tempo. Seria um teste. Antes de acionar, Joni ainda pensou no caso de dar tudo errado. Um tímido sorriso apareceu no seu rosto. Pensou ele: Não tive que deixar nada avisado para ninguém. Pelo menos nisso serviu minha vida sem graça e enfurnada em livros, monografias e teses. A família que eu tinha eu deixei pra trás, a família que eu poderia ter eu rejeitei. Vou enfim arrumar o que fiz de errado. Vou consertar minha vida torta. Acomodou-se na cápsula, ajeitou o capacete e com o polegar esquerdo acionou com um controle a máquina.

...

O despertador finalmente disparou. Joni já havia acordado pelo menos há 2 horas e apenas aguardava o toque do relógio para poder iniciar o dia mais esperado de sua vida...

Ad eternum

sexta-feira, 11 de setembro de 2009

O Forte Apache


Tudo que o garoto pensou no instante em que o pai tirou o brinquedo da mala foi:

- Como ele conseguiu? Um Forte Apache era tudo que eu queria e nem me lembro de ter pedido.

Naquele momento o menino sentiu-se de fato feliz. Era uma caixa muito bacana. Na frente o desenho de soldados da sétima cavalaria em seus cavalos lutando contra um grupo de índios. Um pouco acima os rostos de um general e de um guerreiro Pele Vermelha lado a lado sob a inscrição Forte Apache. Era uma caixa de papelão brilhante, muito colorida devia ter uns quarenta centímetros de largura. Os homenzinhos eram pintados em detalhes e não em uma cor só. Algumas paredes do forte eram realmente de madeira, o que fez surgir comentários do tipo: Olha só! Que bacana! É de madeira! O menino não sabia, mas havia no ar algo bem mais valioso do que aquele pequeno exército, aquela pequena tribo e seus cavalinhos brancos com selas coloridas.

O tempo é engraçado, faz miséria na concepção das coisas. As vésperas daquele aniversário o garoto via cada dia como se fosse uma eternidade. Aos poucos esses dias começavam a diminuir. Semanas vão se entregando fácil, meses vão sendo atropelados e anos já não representam grandes coisa. Aniversários então se tornavam de mágicos a marcantes, de marcantes a diferentes, de diferentes a nem tanto e de nem tanto a monótonos.

Nascemos imaculados e na infância carregamos a mais valiosa carga do mundo: Pureza. Feliz daquele que consegue carregá-la no coração o maior tempo possível. Mas a verdade é que mais cedo ou mais tarde até a inocência adoece. Assim como todo mundo o garoto foi aniversariando e outros presentes vieram. O velho já não lhe dava mais brinquedos, nem bicicleta nem jogos. O negócio passou a ser dinheiro, roupas, e com os anos, só os parabéns por telefone. O tempo é absoluto em tudo. Se ele pode até endurecer a fumegante lava de um vulcão, por que não petrificaria corações?

No tempo do Forte Apache o garoto tinha uma preocupação. Ele imaginava como estaria mais ou menos com a idade do pai. Teria um mundo nas costas? Teria as mãos capazes de fazer pequenas mágicas com cartas de baralho?

O tempo fez o que melhor sabe fazer. Voar!

Todo aquele exército de cavaleiros liderados pelo generalzinho foi sucumbindo a cada batalha. A cada novo embate já não havia tantos homens pra contar histórias. Assim como na vida real ali no mundo das miniaturas o tempo foi cruel. Os apaches foram extintos, os Ianques eram esquecidos e os cavalinhos abandonados num canto qualquer do quintal. A verdade é que numa pequeníssima fagulha temporal, toda aquela geração de corajosos guerreiros sumiu do mapa. Nem mesmo a fortaleza deixou ruínas.

Setembro, como em todo ano surge com tambores, bandeiras e anúncios de flores. O garoto já não pode mais ser chamado de garoto, ele já tem muitas respostas àquelas perguntas de menino. Não existem mais indiozinhos, bicicletas e tabuleiros. Nada disso lhe faz falta, a não ser o toque do telefone.

terça-feira, 1 de setembro de 2009

O segredo das Oliveiras


Os gemidos assustados do mestre tocaram meu coração. Aproximei-me vagarosamente por entre as oliveiras e ele sentiu minha presença. Seus olhos antes azuis pareciam um céu ao entardecer. Olhos rosados em profundas olheiras.

- O que fazes ainda aqui? Perguntou.

- Não vou lhe trair. Disse-lhe.

- Mas o Pai já disse que assim será. Retrucou.

- Porém vejo que o Filho quer desobedecer. Falei, encarando o olhar sofrido de meu querido Rabino.

A face do nazareno estava marcada por dois sulcos deixados pelas lágrimas. O ar pesava como chumbo, já havia escurecido e os demais dormiam.

Continuei:

- Se Ele é o Pai, então você é o Filho. Se não podes ou não queres que um exército de anjos venha lhe salvar, eu o farei.

- Não é assim que estará escrito. Profetizou.

- Não importa, repliquei, eu não deixarei que destruam que flagelem ou matem o amor personificado. Não deixarei que os homens sobrepujem com seus egoísmos e suas fraquezas as coisas que aprendi com você.

- Homem! Deixe de desobedecer. Faça a vontade do Senhor! Determinou.

- Condenarás aquele que vai contra o mundo para salvar a sua palavra? Perguntei.

- As minhas palavras só viajarão no tempo se o destino traçado pelo Pai for cumprido.

- E este pavor que lhe toma a alma? Esta vontade insana de sair correndo para os confins do oriente e lá se perder nos braços de uma juventude interrompida por esta missão? Como explicar isso?

- Sou humano. Meu Pai decidiu assim. Meu medo é escravo desse corpo. Alegou, olhando para o chão e com seus cabelos caídos sobre a face.

- Teu medo é escravo, mas tua vontade é livre. Seu coração humano é quem manda no teu espírito. Tentei.

- Vá de retro satanás. Rosnou o Rabino.

Ele bem sabia que minhas intenções nada eram satânicas. Professou tais palavras sem fé, sem força, mal ameaçou e já estava de novo agachado, chorando muito. Curvei-me e toquei sua cabeça sentindo toda a sua angustia.

- Sua palavra será salva. Prometi.

Dessa vez Ele ergueu os olhos de um jeito interrogativo.

Expliquei então:

- Deixe que me levem. Somos muito parecidos. Muitos desses Rabinos só o observaram de longe. Pedirei para que algum garoto lhes diga nosso esconderijo. Vá mestre, fuja, corra para o Oriente, viva aquilo que merece.

Dessa vez o Homem pareceu balançar. Continuei argumentando.

- Somos muito parecidos. Manterei a cabeça baixa. Deixarei meu cabelo solto sobre o rosto. Com certeza me enviarão para um grupo de figurões, Romanos que nem lhe conhecem. Faremos um pacto. Contaremos a história do seu jeito. Um bom boato ressuscitará e eternizará suas palavras de amor a toda humanidade.

Sentindo o silêncio do Mestre, já fui acordando os demais. Sentamos e combinamos tudo. O destino de meu nome, decidimos que seria o arrependimento e a forca.

Logo o garoto estaria chegando com os soldados.

Despedimos-nos do nosso querido líder. Dei um beijo em sua face. O Rabino sairia na escuridão até encontrar alguma caravana rumo ao leste do deserto.

...

Os soldados chegaram.

Pedro ainda tentou brigar. Cortou a orelha de um soldado. Enfurecidos eles me levaram até o olho do furacão.
...

Na cruz minha dor era lancinante, a mulher olhava com os olhos cheios de lágrimas. Emudecida não entendia.
...

Em alguma caravana rumo ao pacífico, o Mestre tomava uma fumegante tigela de lentilhas olhando o sol poente.