- Pai! O que está havendo ali?
- Nada demais filha. É o vendedor de biscoitos, que faz tempo que não aparecia.
A menina de cinco anos olhou de novo. Observou Dona Marta, o velho Durval. Estavam tentando convencer o vendedor a lhes arrumar uns biscoitinhos a mais. Na verdade o magrelo Odair não deveria ser exatamente chamado de vendedor. Naquele mundo essa função já não existia mais, tudo era na base da troca. O dinheiro há certo tempo já havia parado de circular. Aliás, não só o dinheiro, mas absolutamente tudo estava parado.
Desde o fenômeno Novelo o mundo era outro. Odair era o fornecedor de biscoitos daquela quadra. Chamá-lo de vendedor era só um vício cultural trazido de outras épocas. Alguns dizem que a Kombi dele ainda tem gasolina, mas isso provavelmente não passava de mais uma das antigas lendas urbanas. Com a saída do biscoiteiro todos foram voltando aos seus lugares. Dona Marta lá no fundo, Durval perto da catraca, Zezé preferiu ficar de pé fazendo alongamento perto da porta.
Alguém acabou falando mais alto lá atrás:
- Espero que o Joel dos frangos passe aqui na semana que vem. Logo será mais um dia do Novelo e poderíamos comer um delicioso frango assado.
- Pai, nesse dia do Novelo será que o senhor consegue um brinquedo pra mim? Perguntou a pequena Sara.
O homem no alto de seus 38 anos procurou a mulher. Ela estava demorando desde que foi ao banheiro no ônibus do lado. Finalmente ela surgiu na porta.
- Que demora. Disse ele.
- Tinha fila no banheiro. Respondeu a mulher.
- Temos sorte de ter um ônibus com banheiro perto do nosso. Tem gente que anda quadras pra encontrar um desse tipo, ou então se alivia por ai. Completou a mulher.
- Mãe! Chamou a menina
- Sim, querida.
- No dia do Novelo, posso ganhar um brinquedo?
- Claro filha. O Papai Novelo deve aparecer aqui nos próximos dias.
Papai Novelo era um senhor motorista de uma velha caminhonete Rural. Ele tinha muito jeito com crianças e preparava balas, além de fazer brinquedos de madeira. A mulher então suspirou e disse:
- Quem diria. Semana que vem já é dia do Novelo de novo. Passa tão rápido. Parece que foi ontem, eu peguei esse ônibus pra ir pro colégio.
O homem olhando o semáforo apagado e enferrujado falou:
- É querida. Já se vão oito anos desde o fenômeno. Lembro quando a pequena TV do falecido Lírio ainda funcionava e noticiou em primeira mão. “O novelo está fechado, conforme previam os especialistas, hoje é o dia do colapso final”. Foi a partir disso que todos nós começamos a chamar tudo isso de Era do Novelo.
- Papai, eu adoro quando você conta coisas do mundo lá fora. Falou sorrindo a menina.
- Era maravilhoso minha filha! Já contei que eu morava num prédio onde havia uma grande praça vizinha? E que sempre, eu e meus irmãos brincavamos nessa praça? Saudade dos meus irmãos!
- Sim pai, o senhor dizia que até em árvores subia. E eu nunca nem vi uma árvore. Disse a menina baixando os olhos.
O pai vendo certo ar de tristeza na menina comentou:
- Filha. Nós não podemos desanimar. O Novelo apesar de tudo, me fez conhecer tua mãe e me deu esse presente maravilhoso que é você. Sua chegada aqui no nosso ônibus foi uma emoção que ninguém aqui vai esquecer. Não é Dona Cecília?
A parteira olhou de sua cadeira com um grande sorriso no rosto e um copo fumegante de café que acabara de pegar na perua vizinha.
Sara sentiu-se melhor. Todos ali a adoravam.
A menina fechou os olhos por um momento e pediu baixinho pro Papai Novelo, pra que um dia ela pudesse viver todas as coisas que o papai contava pra ela.
Alguém lá na frente gritou histericamente. Todos foram ver. Era o Negro Ataulfo o motorista.
- Eu vi! Eu vi! A sinaleira piscou rapidamente a luz verde.
Todos ficaram atônitos com aquilo. Na verdade eles sabiam que não se tratava de um sinal fechado ou aberto resolver aquela situação. Simplesmente as estradas pararam. Ninguém no mundo nunca mais encontraria a “ponta do barbante”. Todos sabiam que mesmo que não houvesse aquele caótico engarrafamento, nenhum carro da redondeza teria combustível pra andar. Já passara quase uma década desde o começo daquilo. Uns se aventuraram a pé, outros chegaram pra ficar, tiveram pessoas que Tomaz, o coveiro, levou, tiveram uns que até saiam e depois de meses voltavam. A verdade é que aquelas pessoas aos poucos foram se acostumando, se amoldando e se transformando naquilo que eram agora. Provavelmente muitos ali nem saberiam mais viver de outro jeito.
Mas mesmo que aquele lampejo verde fosse um delírio do cansado motorista, aquilo foi recebido como um sinal. Talvez novos tempos estivessem surgindo. Os passageiros continuaram olhando boquiabertos para o velho semáforo quebrado. Alguns nem lembravam mais de como era a vida antes.
Sara com os olhos arregalados, agradecia em pensamento para Papai Novelo.