sexta-feira, 6 de novembro de 2009

A Princesa e o Farol


Lá estava ele novamente, olhando o horizonte e seguindo o imaginário canhão de luz do farol. Seus pensamentos perdidos no oceano tentavam encontrar o ponto de origem, o gênese de sua angustia. Suas perguntas não encontravam respostas definitivas. Lembrava do verso de um velho soneto onde o poeta chorava: Em que estação sucumbiu minha vida, qual maré curou minha doce ferida. Aquele velho farol era o porto dos lamentos do deprimido Hector. Seus olhos tristes mergulhavam no fundo daquele gelado campo de ondas, mas sua mente voava de encontro às rusgas, as diferenças e as decepções vividas com sua mulher, Janice. Tinham brigado feio naquela tarde. Apenas três anos de casado foram suficientes pra dizimar, extinguir, desmistificar um amor que agora provava ter sido só uma desastrada paixão.

O local não poderia ser mais emblemático. Velho farol abandonado, lugar bonito e tão misteriosamente esquecido pelo povo daquela cidade. Ali era o jardim das delicias do outrora apaixonado casal. Foi ali o primeiro beijo, o amor, os planos e as promessas. Quanto tempo fazia desde a última visita juntos ao farol? Depois de casados, só uma única vez.

Lembrou do maior dos planos. Era, para eles, a luz mais forte e brilhante no ponto mais longínquo do horizonte: Um filho. Um filho que nunca veio. Ele nunca admitiria, ele nunca ousaria esboçar que a criança que nunca existiu fosse o motivo de tanta decadência na vida dos dois. Ele batia nos peitos e como um soldado fiel, imponente e corajoso protegia o problema da amada como se fosse um problema do mundo. Hector nunca mencionou qualquer grunhido em desagrado a este drama. Mas o pensamento, ah o pensamento! Esta entidade cruel que domina qualquer ser em qualquer tempo, em qualquer situação. O pensamento com seu bafo quente cochichou nos seus ouvidos:

- O choro do seu filho é o que não te deixa dormir.

- Sai de minha cabeça, pensamento tosco e mentiroso! Gritou pra si mesmo o perturbado homem.

Houve silêncio.

O pensamento nem precisou mais repetir. Hector caiu de joelhos e aos prantos revelou-se como um desgraçado que havia sido traído e amaldiçoado por Deus. Foi ali de joelhos que percebeu a luminosidade vinda da janela do farol. Levantou-se vagarosamente e boquiaberto viu a luz iluminar, agora de verdade, o mar instável e assustador lá fora. Pensou estar louco. Como poderia aquele velho canhão de luz ainda funcionar?

Nesse intervalo de estupefação percebeu um pequeno movimento lá longe, no fundo. Cerrou os olhos e vislumbrou dois braços desesperados. Havia alguém se afogando. Precisava fazer algo.

Sem pensar muito, desceu correndo por entre as rochas, despiu-se de sua blusa celeste tricotada pela mulher e desprezando o frio que chicoteava seu dorso atirou-se sem titubear na água gélida e salgada. Nadava como um cachalote: Pesado, mas habilidoso, aproximando-se cada vez mais dos gritos de socorro. Percebeu que se tratava de uma mulher, ela estava enrolada num pedaço de rede de pesca. Com dificuldade e engolindo muita água conseguiu segura-la nos braços e contra o vento, as ondas e o desespero da vítima, foi levando-a ao raso. O corpo da mulher, apesar do contexto era quente e macio. Naquela fração de emoção, engolindo água e afogando-se em adrenalina lembrou-se das noites frias com Janice, os dois sob o chuveiro fumegante desafiando a estação, cobertos apenas com a manta do desejo. Tal lembrança em tal situação tornaria impossível que o momento não lhe trouxesse excitação. Ali no meio do turbilhão percebeu quão bela era a moça que agora tinha nos braços. Cabelos ruivos, face clara e olhos da cor das algas. Pequenas sardas entre o pescoço e ombros pareciam hipnotizar com a ordem: Siga, siga, devore todo o resto. Sentiu os seios tocar-lhe o peito. Percebeu que ela estava sem blusa, usando apenas um colarzinho de ossos. Percebeu também que ela havia se acalmado, pois já tinha se desvencilhado da rede.

A moça que irradiava uma juventude cruelmente invejável estava ali abraçada com Hector. Os dois com os corpos sob a água. O frio não tinha permissão para estar por ali. Sem dizer nada, fizeram amor nas águas, iluminados pela cintilante e mágica luz do farol.


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Ao acordar Hector estava todo dolorido. Do seu lado a garrafa de vinho. Devia ser umas sete da manhã. Sua cabeça parecia que iria explodir. Lembrou-se dos pensamentos no farol, o filho que não existia, a luz, a mulher. Não havia duvidas que a bebida o fez perecer e tudo não passara de um sonho. Um sonho tão real quanto a tristeza daquela desilusão. Mas nem tudo estava perdido. Precisava ir para casa, precisava confessar a mulher de sua vida que um filho lhe fazia muita falta. Precisava abrir seu coração pra tentar salvar o casamento.

Janice nem quis ouvir. Em toda a vida de casados, ele nunca havia sequer faltado a um almoço. E agora depois de uma noite fora, como poderia se explicar? Sem blusa, com hálito de bebida. Não existiam dúvidas para a esposa. A vida dos dois ali tinha acabado. Deixou o sozinho na varanda e saiu com as malas. Antes ainda disse:

- Que imbecil usaria um colar de ossos feminino depois de uma noite de luxúria?

Hector emudeceu. Estático levou as mãos ao colar, que só então percebera no próprio pescoço. Atônito, perplexo, confuso, desnorteado, olhou para o infinito.


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A vida na pacata cidade litorânea tornou-se ainda mais rotineira do que outrora havia sido. Desde que a esposa desapareceu, Hector caiu ainda mais abruptamente nos braços da bebida. Andava pelas ruas como um naufrago que perambulava por uma ilha deserta. Barba por fazer, roupas abarrotadas e um coquetel de cheiros enraizado na sua pele curtida e oleosa. Os outros o viam com pena, pois sabiam de sua desgraça. Voltou inúmeras vezes ao farol abandonado. Com uma garrafa em punho, declamava seu amor ao mar. Chamava por uma mulher que nem sabia o nome. Dormia exausto na areia da praia, buscava incessantemente pelo mesmo sonho. Muitas vezes saia, em canoas, na companhia de pescadores, jogando a rede e olhando os peixes agonizantes no chão do barco. Certa vez, um desses peixes que se debatia no barco, fixou os olhos esbugalhados naquele homem e então conseguiu pular para o mar e para a salvação. Naquele instante o medo transpassou aquele apaixonado coração. E se aquela loucura houvesse de fato acontecido e ao adormecer tivesse deixado a sua princesa escorrer entre seus braços e sumir nas profundezas do oceano? Seu pânico era ter fracassado em salvar a mulher dos seus sonhos.

Apertava o misterioso colar entre os dedos e chorava lembrando-se dos olhos cor de algas. Já haviam passado meses desde que uma noite transformou-se num delírio, num sonho, num mistério e dia após dia foi se transformando numa paixão avassaladora.


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REINO DE GROTÃO – A princesa Liduína


Desde o casamento com o príncipe Boca Grande, a princesa Liduína vinha sofrendo de uma aflição terrível. Ela sabia que um herdeiro ao trono de Grotão era mais do que obrigação para a nova Rainha daquele escuro mundo. A linda sereia com seus cabelos cor de fogo e seus brilhantes olhos de algas, fora a escolhida entre todas as fêmeas daquele reino. De fato era incrível que tão bela criatura pudesse viver entre outras tão esquisitas. O príncipe Tubarão Boca Grande contava os dias para declamar a todos os seres de Grotão a continuação da família Real.

Liduína já tinha concluído que o Rei era o último de sua geração. A sereia sabia que a fertilidade não morava nas entranhas de Boca Grande. Mas como dizer isso ao orgulhoso tubarão? Como escancarar aos moradores de Grotão que a majestade, filho do mitológico Dourado III carregava consigo esse pecado imperdoável para aqueles que têm o sangue azul? Ela nunca contaria. Liduína teria esse príncipe de qualquer jeito. Era certo que ela deveria tomar todo cuidado do mundo nessa aventura perigosa. Boca Grande era respeitado em todos os corais, tocas e fossos de Grotão. Até mesmo no submundo de maior escuridão tinham um grande apreço pelo jovem Rei.

Um plano foi executado pela sereia. No entanto aconteceu o que jamais poderia acontecer. O olhar triste de certo faroleiro apunhalou de paixão o meio corpo da ousada princesa.

Sem saber bem porque, a formosa amante deixou com o homem o seu colar de ossos. Essa foi sua maior falha. Um dos súditos da realeza que esteve por alguns minutos numa canoa entre humanos e se salvou milagrosamente reconheceu o colar envolvendo o pescoço de um deles. Não teve dúvidas. Contou ao Rei.

Boca Grande irritado foi ter com a jovem rainha, esta em sua nervosa ingenuidade nem pensou em inventar qualquer história, contou sua loucura e pior ainda confessou sua insólita paixão. O tubarão caiu em desgraça, amaldiçoou a sereia e a expulsou para os confins das profundezas onde nunca mais pudesse ver a cara de mais nenhum peixe. Boca Grande não entendeu e não percebeu o estado da infeliz. Liduína meses depois teve seu príncipe numa toca escura com a ajuda de bondosos peixes abissais. O rei nunca ficou sabendo desse nascimento. Liduína o chamou de Noturno Coração Iluminado, em homenagem a mais linda noite de sua vida. Uma noite de amor sob a luz do farol.

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