sexta-feira, 20 de agosto de 2010

Fim de Tarde no Trapiche


17 Horas e 20 Minutos

Naquele fim de tarde fui até o trapiche para esperar o sol dar seu "até breve". Aquelas tardinhas de inverno propiciavam uma deliciosa iluminação dourada. Era um elixir para meu cotidiano parecer um pouco menos cinza. O vento gélido obrigava-me estar bem agasalhado, mas não seria mentira dizer que um facho da luz solar na minha gelada face chegava como uma tépida caricia. Pequeníssimo verão entre meu gorro e meu cachecol. Era difícil acreditar eu não tivesse companhia de outros pra mirar um espetáculo tão prazeroso e ao mesmo tempo tão singelo. Dali, encostado no protetor do trapiche, eu podia ver os fundos da Companhia de Pesca, com suas pequenas baleeiras e outras embarcações com fumegantes chaminés. Talvez aquela leve maresia, fosse o grande motivo que afugentava outros transeuntes como eu.

Naquela tarde, especialmente triste, vi um velho lá do outro lado, sobre a plataforma de cimento da casa de pesca. Ele olhava o mar como se esse fosse um cão de estimação, com domínio e superioridade. Deveria ser um dos pescadores que ali trabalhava. Olhou de um lado e de outro. Passou os olhos pela minha figura e não me percebeu. Aproveitei para analisar seus movimentos. Era um senhor de mais ou menos sessenta anos. Vestia um pesado capote e um gorro escuro, típico de velhos marinheiros.

Tentei imaginar a vida daquele homem. Um conhecedor dos mares?! Com certeza já havia viajado muito. Tinha movimentos cuidadosos e ao mesmo tempo parecia convicto do que fazia. Depois de um tempo, entendi melhor. Ele jogava no mar o que provavelmente seriam sobras de pescas. Vi naquele pesado fardo de restos toda minha angustia, pois me lembrei da minha situação.

Desde que perdi minha esposa, brutalmente assassinada por um psicopata, tive de cuidar sozinho da minha filha. Ela tinha, na época, três anos e agora transformara-se numa adolescentes cheia de dúvidas e carente de uma mãe. Não eram poucas as nossas discussões e naquele dia mesmo, mais cedo, acabaramos de ter uma briga muito intensa. Como sempre ela desdenhava de minha super proteção e dizia que não agüentava mais tanta proibição pra tudo. Ela não entendia meu trauma, aliás nunca entenderia. Afinal de contas era só um anjinho no berço quando recebi o policial e o inspetor na minha casa naquela estúpida noite chuvosa.

O pesado saco ao cair no mar parecia fazer meu coração afundar junto. Será que eu deveria mergulhar atrás? Matar-me? Perdi minha querida mulher de forma tão injusta e agora, minha pequena me odiava. Ainda lembrei sua última frase antes de eu dar as costas e sair:

- Isso, saia daqui, vá embora. Eu odeio você e seu medo de tudo!

Eu nem olhei pra trás.

Agora ali no trapiche eu invejava aquele senhor. Um homem maduro que certamente tinha criado bem seus filhos e no fim de um dia estafante de trabalho teria uma esposa o aguardando em casa com uma deliciosa sopa quente e provavelmente filhos educados que o amavam.

....

16 Horas e 48 Minutos

- Mais uma, mais uma, pequeno John!

O velho sozinho falava e já com dificuldade conseguiu jogar o pacote no bagageiro da sua enferrujada pick-up. Pigarreou e depois de checar os arredores entrou e ligou o barulhento motor.

No painel do carro uma foto amarelada de uma mulher de olhar vago e sorriso encabulado ao lado do próprio. Olhando para o retrato o velho vociferou:

- Olha só vagabunda! Agora tenho mais uma putinha que vai te fazer companhia no inferno. No chão do carona um monte de garrafas de uísque vazias. O carro era uma verdadeira pocilga. Até o cheiro era nauseante. Antes de dar arrancada escarrou pela janela do veículo.

Dirigiu por algumas quadras. No caminho, em silêncio, lembrou da esposa, a mulher da foto, seu olhar ficou pesado e seus olhos cheios de água. Falou pra si mesmo:

- Vagabunda! Vagabunda! Porque fizesse isso comigo? Um homem como eu não pode ser traído. Deverias ser sempre minha do meu jeito. Mulheres vagabundas como você tem de ir pro inferno. Você foi a primeira e me viciou nesse negócio. Muitas outras ainda seguirão você.

Continuou falando insanamente:

- Essa menina deu trabalho pequeno John! Essa putinha de hoje deu trabalho. Hahaha. Mas, pequeno John, viu como ela abriu a porta com muita facilidade? Que putinha burra, pequeno John. Que burra!

Parou o carro em frente à Casa de Pescas. Antes de sair colocou o gorro preto para proteger da tarde fria. Deu uma olhada geral, ergueu com certo esforço o saco e vigilante entrou furtivamente no prédio em direção ao pátio externo dos fundos.

O mar estava cinza feito sua própria vida. De novo olhou ao redor: Ninguém.

Sem cerimônia atirou a adolescente empacotada na água profunda que batia na plataforma. Deu as costas e saiu.

....

15 Horas e 52 Minutos

- Não deveria ter dito aquilo pra ele, meu paizinho. Ele é o único que tenho comigo. Mas ele me irrita com sua super proteção. Como fui grossa.

A garota estava com o coração cheio de remorso.

Ao ouvir a batida na porta, animou-se.

Foi correndo abrir.

- Pai! Desculpa...

Sua frase foi interrompida com a visão.

Não era seu pai. Na porta um velho feio e com aparência de bêbado tinha no olhar uma insanidade diabólica.

Um comentário:

Profª Rita disse...

Nossa... que história! Dá um reteiro de filme.