sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

Fermento Royal



Não sei o que causou o barulho na janela, mas sei que me despertou. “Meu Deus que horas seriam?” – Pensei.
Imediatamente lembrei-me do sonho engraçado que acabara de ter. Depois disso, logo veio à cabeça a triste realidade da tarde anterior, imediatamente joguei os lençóis para o lado, minha esposa já havia levantado mais cedo. Tenho que lembrá-la que apesar de ser o dono, quero sempre estar, na minha empresa, na hora certa.

Gritei para Amanda, minha doce e educada governanta que nem precisaria por o café na mesa, pedi apenas que chamasse pelo motorista. Depois de escovar os dentes e tomar uma ducha rápida coloquei o primeiro terno que alcancei no closet. Uma borrifada de perfume e sai correndo do quarto, no fim das escadas meu chofer estava a postos com sua camisa branca de poliéster e um olhar um tanto quanto vago. Ainda antes de sair peguei na geladeira um pouco de suco. Dei um sinal para o rapaz e fomos direto para a garage. No trajeto senti um leve cheiro de cigarro vindo do empregado. Pensei ironicamente no fato de eu nunca ter fumado.

No caminho, mais precisamente parado num semáforo, já confortavelmente sentado nos bancos de couro de minha mercedes e dedilhando alguma coisa no meu notebook, percebi o fatídico envelope com os exames jogados ao meu lado e lembrei-me do olhar do Dr. Augusto. Nunca senti tanta agonia entre aquele momento e quando ele pronunciou a palavra câncer. Irônico que eu, um bem sucedido empresário do mundo imobiliário agora tivesse meu corpo alugado. Morava dentro de mim um tumor e dali só sairia quando o imóvel não prestasse mais.

Alguém bem próximo a janela do carro me chamou a atenção, era um pedinte com um cão vira-lata no colo. Olhou através do vidro escuro do carro. Apesar de saber que seria impossível ele me ver, tive a nítida sensação de que seus olhos analisavam minhas reações, por um instante pensei em abrir os vidros e dar algum trocado, ou será que o que eu queira mesmo era lhe pedir um pouco de vida? Naquele instante o sinal abriu.

Refleti se deveria ter contado para minha esposa, mas logo me convenci que tudo que eu não precisava no momento era de piedade e palavras inúteis. Tentei então ligar só para ver como ela estava. A caixa postal foi quem me atendeu, desliguei sem dizer nada.

Na minha mesa tudo parecia normal, algumas pastas com documentos do dia anterior, o retrato com minha esposa sorridente, tudo bem limpo e impecável como sempre. Peguei a caneca de café fumegante que minha bela secretária deixava pronta e a minha disposição todos os dias pela manhã. Caminhei até a imensa janela, trigésimo quinto andar, dali eu via a cidade aos meus pés. Abri a janela respirei fundo e fechei os olhos. Senti uma lágrima correr no meu rosto. Lembrei de quando eu era uma criança e senti muita saudade.



...............



Meu corpo estava todo empapado de suor quando acordei. Havia tido um sonho muito louco, eu era outra pessoa no sonho, um sujeito rico e triste. Só consigo me lembrar que esse outro eu olhava de uma janela. Engraçado como uma pessoa pode esquecer algo que acabou de sonhar.

Droga de quarto quente, o desgraçado do chefe bem que poderia colocar um ar condicionado aqui pra mim. Chofer dele à quase cinco anos merecia um pouquinho mais de consideração. O cara é montado na grana, tem um “puta” casarão e fica regulando um “confortozinho” pros empregados dele. Homem desgraçado.

Percebi pela hora que o doutor havia dormido além da conta. Muito estranho isso. O cara sempre foi um baita caxias. A gostosona da mulher dele saiu mais cedo pra fazer a caminhada matinal, mas ele ficou lá dormindo. “Oh vida boa!” - Pensei.
Vou me arrumar de uma vez, porque daqui a pouco o dito cujo já vai me convocar.

Deu meia horinha até eu ser chamado. Amanda, a governanta gostosinha, veio até o jardim onde eu estava fumando meu cigarrinho. O patrão tá te chamando lá, e ele ta meio com pressa! Disse ela. “Pressa?” - Pensei. O cara acorda tarde e tem pressa? Minha vontade era já mandar a merda, ficava me perguntando por que aquele filho da puta tinha que ir trabalhar? Um cara cheio da grana, ao invés de aproveitar a vida, queria ir para a empresa. Haja tolice. Se fosse eu, já iria pegar uma praia, velejar com uma mulherada, pescar. Tudo menos ir pro batente num dia quente como aquele.

Esperei o sujeito na saída da escada. O veado ainda toma suquinho antes de sair, meu saco já tá cheio de servir aquele cara.

Trânsito e calor infernal. Pelo menos aqui na mercedona tá fresquinho. O sinal abriu, mas tenho que esperar que um mendigo junte seu cachorro pra que eu possa avançar. Observo aquele infeliz vestido com trapos. Vagabundo tem de sofrer mesmo, onde já se viu um homem daquele tamanho perambulando e ainda com um pulguento no colo, ele que vá arrumar um emprego decente. O outro ali atrás brincando no computador dele.

Na expressa o movimento é intenso nesse horário. A via parece um turbilhão, uma correnteza assustadora, meus pés esmagam o acelerador. Examino a covardia do panacão pelo retrovisor. Noventa, cem, cento e dez por hora, ele percebeu! O vejo incomodado pelo espelho. Vai chefinho, quero vê-lo chorar, pede pra eu ir mais devagar! Não tem coragem de enfrentar os meus olhos. Vejo pânico em suas pupilas. Olha pra mim desgraçado.
Como sou idiota, não percebi a tempo que aqueles olhos estavam bem mais a frente, onde os meus deveriam estar. Provavelmente ele via a morte voando de encontro ao nosso para brisas. Minha distração naqueles segundos foi o que bastou. Ouço uma buzina, sinto um saque forte seguido pelo som de uma explosão. O calor antes superficial entra como água fervendo pelas minhas entranhas.

.............


- Que susto você me deu Shazam! Acordar-me lambendo minha cara? Cão metido.

O cachorro me olha com a simpatia de um velho amigo, coça o dorso e abre a boca num bocejar gigantesco. Procuro minha garrafa e nada encontro, nem lembro onde deixei, sinto fome, minha barriga reclama.

- Cão! Tive um pesadelo daqueles! Disse para meu fiel amigo. Acho que essas estradas agitadas é que estão me alucinando. No pesadelo eu era motorista e dei de frente com um caminhão. Coisa horrível. Mas também só lembro isso.

Levanto-me com dificuldade, preciso me apoiar na parede abaixo do viaduto e escarro uma saliva mais grossa. Apesar do calor estou envolto em trapos, percebo o quão feia está minha velhíssima mochila. Um cafuné na cabeça de meu amigo e lá vou eu para mais um dia na cidade.

Quase nem lembro mais de quando comecei assim. Eu lembro que quando criança eu brincava com uns amiguinhos mais ricos. Maldita covardia. Meu primo Genézio ta lá, com a mulher com os filhos, se vira com os rolos dele. Eu nunca nem consegui segurar uma arma, só de pensar dá tremedeira. Isso mesmo, minha falta de coragem que me jogou nessa imundícia aqui. Já me disseram que foi a cachaça. Cachaça nada, meu primo Genézio também bebe e ta numa boa. O negocio é que ele bebe e vai à luta. Eu fiquei pra trás. Tive medo de morrer igual ao meu pai, todo peneirado pela polícia. Mas eu também nunca que conseguiria matar ninguém, nem ameaçar eu consigo. Sou um fraco que nasceu pobre. Pior coisa que existe, um fraco pobre.

Preciso descolar um troco no sinal, mas hoje é complicado, o calor ta muito forte e a granfinada nem abre as janelas. Ficam ali no arzinho gelado. Desculpa ai Shazam, mas sou obrigado a te pegar no colo. Sabe como é né? A criançada fica com pena dos cachorrinhos.
É inacreditável essas películas. Muito escuro. A pobreza com certeza causa asco nas pessoas. Não devo ser merecedor de ver os rostos das pessoas felizes. Patéticos e tolos acham que um vidro escuro vai bloquear toda a miséria do mundo.

- Ei! Vagabundo! Ouço um policial uns três metros atrás de mim. Mas nem tive tempo de olhar direito. O cassetete do troglodita veio direto na minha cabeça. Senti as pernas bambearem na hora. Shazam assustado pulou de meus braços. Na hora senti uma espécie de surdez. Parece que a dor, quando se está surdo, é muito mais forte. Não tenho alternativa senão sair correndo. Cambaleante como uma barata envenenada atravesso a avenida e desapareço num beco escuro. Estou cheio de dor, de medo e daquilo que mais me faz sofrer: cheio de mim mesmo.

.........

Quando uma pinha caiu sobre o corpo do sonolento cão, este acordou num pulo e ficou alvoroçado com o que havia acontecido. O cachorro ainda ofegante parecia ter tido um sono agitado. Os animais também sonham. Aquele cachorro vira lata provavelmente deve ter tido um pesadelo. Pelo seu pânico momentâneo é provável que ele tenha apanhado no infeliz sonho. Mas ele não lembrava tudo. No pesadelo, ele seria um homem ou uma barata?
Tudo isso passou pela cabeça do canino em uma fração de segundos. Afinal de contas, quem realmente o acordou foi um esquilo que de cima de uma arvore acabou jogando uma pinha na sua cabeça. Seguindo seus instintos o cachorro latiu e ameaçou o desastrado esquilo. O roedor não perdeu tempo, pulou da árvore para o telhado da casa ao lado e saiu em disparada invadindo as coberturas das mansões do quarteirão. Assustado e sem perceber que o cachorro nem lhe oferecia mais perigo, o pequeno animal acabou se desequilibrando e despencando do pergolado de um belo sobrado. Sua queda acabou fazendo seu corpo bater com uma razoável força numa janela.


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Não sei o que causou o barulho na janela, mas sei que me despertou. “Meu deus que horas seriam?” – Pensei.
Imediatamente lembrei-me do sonho engraçado que acabara de ter.

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