sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

Querida Professora




A mulher com andar elegante e trajando um confortável vestido florido, foi até a abarrotada caixa de correspondências para recolher o que lhe interessava. Entre contas de luz, água, panfletos imobiliários, alguns jornais de supermercados, faturas, o que lhe saltou os olhos foi um envelope com as bordas verdes e amarelas e sem nada anotado no espaço de “remetente”.

Entrou na sala, deixou a papelada sobre um belo aparador de vidro seguindo até sua poltrona predileta com o referido envelope nas mãos. Observou mais uma vez o não preenchimento da origem e conferiu o seu nome completo, bem como o seu endereço no destinatário. Ajeitou-se no confortável móvel revestido em couro. O local era bem iluminado, com um janelão as suas costas e uma clarabóia central coberta com vidro aramado que surgia imponente no vão central de pé direito duplo. Era, sem dúvida, seu espaço predileto naquele belo casarão. Os móveis eram de madeira nobre e tudo ali parecia muito bem escolhido, compondo um espaço confortável e ao mesmo tempo glamouroso. A experiente mulher, que apesar dos seus cinqüenta e poucos anos aparentava ser uma pessoa mais jovial, buscou seus charmosos óculos sobre a mesa de centro e com cuidado abriu a missiva.

Já nas primeiras linhas, antes mesmo que começasse a digerir o escrito, a mulher sentiu satisfação pela caligrafia bem desenhada em caneta tinteiro preta e pela qualidade do papel. A carta iniciava com “Querida Professora”. Lendo aquilo, logo veio à mente da leitora uma reconfortante lembrança dos tempos em que lecionava nas escolas, cursos técnicos e na Universidade lá do sul. Sentiu certa nostalgia e satisfação em ter nas mãos um relato, mesmo que apócrifo, de um ex-aluno, provavelmente tímido, que agora viria lhe descrever a importância dos estudos em sua vida. Iniciava assim a carta:

“Querida Professora, não creio que lembrarás a minha pessoa. O que sei é que eu jamais tirei de minhas lembranças o legado que a senhora me deixou. Fui seu aluno por um semestre no final dos anos oitenta. A senhora dava aulas de Finanças. Estou ciente de que já não lecionas mais naquela instituição e que nem tens mais moradia naquela bucólica cidade do sul. Já se vão mais de vinte anos desde que eu freqüentava aquelas aulas. Lembro de seu jeito tranqüilo e sereno de passar seus conhecimentos e toda a sua sapiência. Sua oratória era exemplar. Meu jovem coração admirava sua postura séria e seu engajamento com o trabalho que exercias. Não se tratava de qualquer espécie de atração por sua pessoa. Mesmo porque, com todo respeito, minha admiração sempre ficou limitada a sua forma de contemporizar, de apresentar suas idéias e defender sua doutrina...”.

Nesse instante, a conceituada professora, deu um pequeno sorriso de canto de boca e pensou consigo mesma. – Que bom que não se trata de uma boba declaração de um apaixonado.
Ela sabia que quando mais jovem era bela e atraente e não lhe causaria surpresas que um antigo aluno pudesse ter se sentido fascinado. Porém, por toda a sua carreira de livros e cadernos, seja como professora, orientadora ou pesquisadora, ela sempre teve orgulho de ser conhecida e lembrada como uma pessoa de grande respeito e reputação ilibada. Ajeitou os óculos e movida pela curiosidade seguiu a leitura

“Lembro professora, de seu modo educado e metódico de iniciar as aulas. A senhora sempre escrevia no quadro uma frase de algum pensador ou algum ditado folclórico e assim deixava aquelas palavras no quadro para reflexão. Certa vez, a senhora entrou na sala com certa pressa e começou a dar sua aula. Eu então interrompi e perguntei se não haveria frase naquele dia. Foi a partir dai que muita coisa mudou em minha vida”.

Mais por curiosidade do que qualquer outra coisa, a experiente docente tentou puxar em sua memória tal acontecimento. Mas ficou no nada. Ela lembrava sim dessa tradição de escrever algo no quadro para pura reflexão, tinha tirado isso dos métodos de um velho mestre que ela tivera o prazer de conhecer ainda na sua adolescência. Mas o fato de um rapaz ter perguntado sobre, isso ela nem arranhava lembrar. O jeito era continuar a interessante leitura. Quem sabe mais a frente não lembraria?

“Naquele dia, a senhora, em sua resposta acabou por mudar o rumo das coisas pra mim. Acho que estavas num dia ruim e disseste: -- Rapaz, antes de eu escrever a frase, diga-me o que você lembra da última aula!
Pego de surpresa, eu fiquei embasbacado e acabei por gaguejar e então respondi que não lembrava de nada no momento. Na verdade foi a resposta que me pareceu mais "indolor". Eu não conseguiria raciocinar e lembrar direito, dado o supetão da pergunta e as gargalhadas dos demais colegas na sala. Até ai pareceria um fato normal, mas o que marcou mesmo foi o que ouvi da senhora em seguida.
-- Meu caro, você não é o aluno que mandou muito bem na festa de apresentação da turma? Não foi você que representou tão bem aquela canção de verão, no nosso churrasco? De fato havia tido uma confraternização cerca de duas semanas antes e eu havia tentado cantar alguma coisa no microfone. Fiquei na hora muito motivado pelo fato de ter sido agora destacado e até elogiado pela senhora. Em seguida, como sugestão e com um certo sarcasmo a senhora perguntou se eu não estaria no ramo errado. Se eu não seria um artista perdendo meu tempo com os números. Um tanto quanto lisonjeado, mas também desconfortável eu dei um sorriso amarelo e a aula, depois de mais uma série de gargalhadas continuou. A questão é que ali naquele instante uma possibilidade começou a aflorar na minha cabeça. Eu comecei de fato a estudar a possibilidade de tentar as artes, o estrelato, a interpretação ou algo assim. Ali nascia um novo homem. O curso de contabilidade nem mesmo terminei. Tentei mais uns dois semestres até mudar definitivamente”.


Contendo um sorrisinho que mesclava orgulho e surpresa, a mulher levou as mãos à boca e pensou. – Essa vida nos reserva cada surpresa. Fui professora de assuntos financeiros por mais de 30 anos e agora recebo uma carta de um ex-aluno que me agradece por ter virado artista. Será que é famoso? A curiosidade a fez voltar logo às linhas escritas.

“Naquela época eu morava numa casa alugada no subúrbio com minha mãe. Viúva e vivendo da modesta pensão de meu falecido pai, minha querida mãe ficou preocupada com minha decisão e constantemente dizia para que eu voltasse aos estudos. Logo que juntei uma pequena quantia, fruto de algumas economias e da ajuda da minha querida mãe, viajei para a capital onde eu sabia que poderia começar minha nova empreitada. Na época foi aberto um curso particular de interpretação. Lembro que quase tudo que eu tinha foi depositado lá. O curso infelizmente era fraco. Provavelmente existam ainda muitas armadilhas desse tipo nesse mundo das artes. As aulas nem foram totalmente oferecidas. Numa certa manhã, com pouco mais de quatro dias de aulas, totalmente inúteis, a sala estava vazia e nunca mais eu nem veria a cara do pilantra que se dizia mestre do teatro. Eu era muito novo e não queria me deixar esmorecer”.

A cabeça da mulher nessa hora era confusa. Afinal de contas ela começava a sentir que ali naquelas palavras, talvez houvesse muito mais do que um simples agradecimento. Ela realmente começou a sentir uma certa cumplicidade com escritor.

“Eu já estava a cerca de um mês na capital quando o dinheiro estava acabando e o provisório trabalho de entregador de panfletos, já não surtia qualquer efeito aos meus bolsos. Tive então que ligar para minha mãe. Desde minha mudança eu ainda não havia falado com ela. Meu temor era que minha querida mãe, com sua conversa doce me levasse a desistir de tudo. Nunca esquecerei aqueles instantes, o telefone chamando e uma voz desconhecida, na verdade era a dona da casa onde morávamos, dizendo:

--- O que você quer agora filho ingrato? Sua mãe morreu já faz duas semanas. Estava sozinha e não teve socorro algum.

Aquelas palavras entraram pelos meus ouvidos como serpentes de fogo. Larguei o telefone e sentia nojo e asco da minha presença. Assassino, ingrato, infeliz, tudo seria pouco pra descrever meu inútil espírito naquela hora. Joguei-me nos braços da rua, com fome e sem vontade de matá-la. Eu perambulei por dias nas fétidas ruas e escuros becos da cidade. Decidi que dali em diante eu faria companhia aos ratos e baratas. Fiquei assim por quase dois anos. Tornei-me uma espécie de miserável caricatura ambulante. A pé eu “andarilhava” entre cidades vizinhas, por estradas federais, me alimentando de restos e dependendo da sorte, torcendo pela morte, contra mim e contra Deus. "

A mulher agora já não se sentia nada bem. A carta havia se tornado um tanto quanto soturna. Seria uma brincadeira de mau gosto? Não. Algo ali estava dizendo que a historia ainda precisava de um fim. Ávida pelo desfecho, continuou.

“Por sorte que certa vez. Eu estava sentado ou deitado numa calçada perto de uma floricultura e uma bondosa senhora, que Deus a tenha, com piedade de minha situação me trouxe um prato de comida e perguntou-me sobre minha família. Tocada por minha triste história, aquela idosa mulher cujo nome era Carmem me ofereceu um lugar para morar numa edícula de sua aconchegante casa. Fiquei trabalhando como jardineiro em seu quintal em troca de comida e moradia. A querida Dona Carmem que lembrava em muito minha mãe, foi uma benção dos céus. Ali morando com ela eu pude dar um novo rumo a minha vida. Foi ali que me dediquei a construir um novo plano pra mim.

Comecei a trabalhar, fazendo bicos em jardins vizinhos. Nesta cidade, onde na época eu estava, haviam muitos quintais jardinados e casas com cercas vivas e praças verdes. Eu adquiri certa habilidade com o tesourão de grama e meus dons artísticos poderiam enfim ser liberados em esculturas em arbustos e pequenas árvores. Modéstia a parte sentia-me o próprio Edward – Mãos de Tesoura”.

A carta, de novo, trazia um bom sentimento à leitora. O rapaz agora parecia ter , pelo menos, superado a morte da mãe. Terminaria de ler a carta só por curiosidade mesmo. Naquela altura, apesar de interessante, ela já não mais se sentia parte da história. Sua surpresa ainda viria nas linhas seguintes.

“Querida professora, a esta altura de minha carta, creio que a senhora já tenha se perguntado, onde fui parar nessa saga? Caríssima, por acaso, eu não havia escrito que um novo objetivo surgiu na minha vida enquanto que morava com a doce e bondosa Dona Carmem? Nesses últimos anos fiquei engajado nessa nova missão. Foram anos de calmaria, onde a cada dia eu plantava uma sementinha no meu novo jardim. Fiquei sabendo de sua nova condição de diretora numa nova universidade, do casamento de seu filho, o dia em que ele saiu de casa. Lamentei a sua separação. Sei que casamentos longos são difíceis de serem assim apagados de uma hora para outra. Vibrei quando no Natal retrasado, seu filho apresentou um neto saudável e lindo. Observei que sua vida foi linda.

Às vezes fico lhe imaginando, tomando seu chá fumegante e lendo seus livros, sentada em sua poltrona preferida e sentindo a brisa suave vinda do Janelão as suas costas. Hoje faz cerca de 10 anos que me despedi de Dona Carmem. Eu e meu tesourão”.

A palavra hoje na última linha da carta deixou as pernas, da agora transtornada mulher, trêmulas. Foi naquele segundo que ela percebeu que alguma coisa não deixava mais a brisa lhe tocar a nuca. Ela parou de respirar. Porém não foi o silêncio que se ouviu naquela sala.

Outra respiração, pesada e acelerada continuava...


......


No meio daquela sujeira de sangue, os policiais ainda tentavam entender.

--- Precisamos saber o que foi usado pra cortar a cabeça dessa infeliz. Descubra também o autor dessa frase. Parece que temos mais um desses malucos soltos por ai.

Mais à frente no paredão com pé direito duplo, escrito com sangue:

O pensamento do dia: "Elogie em público, critique em particular".

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