terça-feira, 3 de março de 2009

Dias e Noites




Daniel estava inquieto, afoito. O pai percebeu, e perguntou ao filho se havia algum problema. O rapaz de 13 anos disse que não, mas a mãe logo tratou de explicar a situação.

--- É que hoje tem gincana lá no colégio. O Daniel está empolgadíssimo não vê a hora de receber a tarefa dele. Disse a mãe.

O pai, então entendeu a agitação do rapaz. Ele sabia que Daniel adorava qualquer tipo de competição.

O garoto deu dois goles no café e já ia saindo com pressa. A mãe ainda o convenceu a levar um pãozinho fumegante, recém saído do forno. Antes de sair Daniel deu um beijo na irmãzinha Diana. Daniel adorava aquela menina. Desde que ela havia nascido, dezoito meses atrás, parece que ele tinha conseguido o que mais queria na casa: Respeito. Daniel ficava aborrecido quando o pai ou a mãe exageravam no tratamento infantil dado a ele. Agora como o filho mais velho, ele se sentia mais cúmplice nas conversas e decisões da casa. Naquela noite mesmo, ele gostou muito de ter ajudado a mãe durante a madrugada enquanto a menina chorava para dormir.

O colégio era a cerca de seis quadras. No caminho Daniel sempre passava na casa de Mogli, seu melhor amigo e dali seguiam juntos. O nome de Mogli na verdade era Josué, mas a sua aparência franzina e seus traços indianos tinham lhe rendido o apelido. Bem menos empolgado que Daniel, Mogli teve que ficar ouvindo as expectativas do amigo em relação à gincana que começaria naquele dia. Se existia alguém que Daniel confiava e contava todos os segredos, esse alguém era Mogli.

--- Espero que não venham com aquelas tolices de arrecadar dinheiro nas casas. Não quero perder meu tempo pedindo esmolas. Disse Daniel.

--- A única coisa que me interessa nessa gincana é a premiação. Respondeu um nem tanto animado Mogli.

A gincana era um evento que todo ano acontecia no Colégio, e a premiação este ano seria uma viagem com tudo pago para visitar as famosas cachoeiras da fronteira. Já no pátio da escola, juntaram-se a Daniel e a Mogli, os outros dois componentes da equipe. Rui, um menino ruivo e extrovertido e Isabel uma garota loira e simpática. A gincana era uma competição por turmas e cada turma dividia-se em equipes que cuidavam de suas tarefas.

Isabel foi logo dizendo:

--- Já estão distribuindo as tarefas lá na escadaria, temos de ir rápido pra ganharmos tempo.

Atravessaram todo o pátio de piso em mosaico até um corredor que a esquerda terminava numa grande escadaria. Ali no piso superior já se avistava certo tumulto. Um professor atrapalhado distribuía bilhetes. Rui subiu correndo, esticou os braços e recebeu do meio da confusão o bilhete de sua equipe. A expectativa era grande. O próprio Rui abriu e leu.

--- O que acontece depois da morte? A melhor resposta ganhará os pontos. Assim estava escrito.
Com tanta tarefa bacana, do tipo conseguir discos velhos, brinquedos raros ou coleções de insetos e selos, aquela tarefa, parecia cair como balde de água fria em cima de Daniel. O garoto ficou em silêncio, parecia decepcionado. Sua equipe deveria escrever algo sobre uma questão que obviamente era impossível de ser cientificamente respondida.
Rui, Isabel e Mogli começaram a trocar idéias do que escreveriam. Isabel achava que o ideal era descrever o paraíso, com suas nuvens e anjos tocando harpas. Rui discordava e pensava num texto mais aterrorizante, talvez mortos vivos invisíveis nas ruas. Mogli apenas observou a serenidade de Daniel, e perguntou:

--- O que foi Daniel? O que você ta pensando?

--- Precisamos dizer a verdade. Respondeu o rapaz olhando para o nada.

Mogli conhecia aquele olhar. Concluiu que Daniel não tinha entendido o sentido da pergunta da gincana. Sabia que Daniel levava a sério demais as competições.

--- Daniel, a questão é só uma coisa simbólica, eles querem respostas engraçadas, criativas, interessantes. Não pense você que isso precise ou vá ser decifrado.

Apesar de concordar com o que Mogli havia dito, Daniel pediu licença dizendo que mais tarde traria uma idéia para os amigos. Mogli sabia que Daniel era um caso perdido. Deixou cair os braços e ainda gritou para o amigo.

--- Daniel! Passa no cemitério e pergunta por lá.

Daniel fez uma careta e saiu apressado. Os outros ficaram rindo com a brincadeira de Mogli.

Até a noite, Daniel já tinha buscado em todos os cantos de seu cérebro uma resposta pra questão: O que vem depois da morte? Mesmo depois que sua mãe tentou convencê-lo de que isso sempre foi e sempre será um mistério e que o exercício da redação era apenas uma brincadeira filosófica, o garoto ainda buscava um argumento convincente. Enquanto a mãe balançava Diana nos braços, Daniel ficava no sofá com as pernas pra cima só observando e pensando.

--- Ela tem algum problema? Perguntou o pai à mãe, preocupado com o choro da pequena.

--- Nada! É sono, todo dia é isso. Tô pra ver menina pra odiar mais o sono. Respondeu a paciente mãe.

O pai então pediu pra tentar fazê-la ninar no seu colo. O homem tentava acalmar a criança, lhe dizendo que era só um soninho, caminhando com ela nos braços. A menina parecia não acreditar no pai e tentava de todas as formas tirar o sono do corpo. Passada cerca de meia hora, a menina finalmente dormiu como um anjo.

O dia seguinte surgiu nublado. Era um sábado e Daniel foi acordado pela mãe que chorava muito. Assustado, o rapaz logo a abraçou e perguntou o que havia acontecido.

--- O que houve mãe? Alguma coisa com a Diana?

A mãe apressou-se em dizer ao filho que a menina estava bem e o que tinha ocorrido de ruim não tinha sido na casa deles.

Quando Daniel chegou junto com seus pais na casa de Mogli, um sentimento horrível encheu o seu coração. Mais cedo, ao receber a notícia da mãe, Daniel ficou chocado e chorou, mas agora vendo o amigo ali sem vida, tudo ficou ainda mais insuportável.

O franzino e tímido Mogli, ali parado, com os olhos fechados para sempre. Parecia uma marionete guardada. Daniel sentiu o seu coração quase parar. Queria dizer para o amigo o quanto sentia. Pensou na hora em como a noção do viver é estranha. Justamente quando vemos as pessoas daquele jeito, como um objeto, um corpo inerte, é que sentimos a peculiaridade e o valor da vida. É como a falta de energia que valoriza tanto a nossa luz de cada dia, ou o simples resfriado que nos certifica que a saúde é tudo. Nos velórios e enterros sempre nos fazemos as mesmas perguntas: Por que, Pra onde, Pra que. Sentimos todo o medo ou inconformidade. Choramos.

O clima de tristeza era geral. Os parentes mais velhos ainda discutiam as causas do atropelamento. Daniel não ficou muito tempo. Sua mãe não estava se sentindo muito bem e convenceu o menino a ir embora com ela. Daniel chorava muito. Ele se perguntava quando aquela dor sumiria e seu coração nada respondia.
Aquele resto do dia foi tão cinza quanto o céu nublado. Daniel ficou em casa vendo TV e dando atenção a sua querida irmãzinha.

À tardinha do dia seguinte, Diana começava a choramingar de sono. Daniel pediu a mãe que deixasse que ele a fizesse dormir. Pegou-a no colo e sentou-se no sofá. Olhando nos olhos da menina tentou conversar enquanto ela esbravejava. Chegava a ser cômico a revolta e resistência da criança. Desde a trágica notícia e a triste visita a casa de Mogli aquela foi a primeira vez que Daniel esboçou um pequeno sorriso. A mãe percebendo que o filho não conseguiria, tomou Diana no colo e a fez dormir em menos de 10 minutos. Daniel ficou apenas observando pensativo. No instante que a menina dormiu, Daniel e a mãe trocaram tímidos sorrisos. Ela estava feliz vendo o filho sorrir, ele contente que havia conseguido uma resposta.

...

A gincana havia sido cancelada, dado o trágico acontecimento. As aulas só voltaram na quarta-feira. Daniel tomou seu café com pão e creme de amendoim. Saiu mais cedo nesse dia. Ele tinha uma missão.

...

Abatida e triste, a mulher, de cabelo negro e olhos indianos, deixava algumas flores num jazigo. Foi então que ela percebeu um pequeno papel dobrado. Provavelmente alguém tinha deixado ali mais cedo. Era um bilhete. A mulher abriu e leu.

“Querido amigo, durma em paz! Minha irmãzinha sempre chora pra dormir. Ela chora porque não sabe que o outro dia sempre vem. Ela não sabe que entre os dias existem as noites e que entre as vidas existe a morte. Minha mãe diz pra mim que eu também era assim. Mas eu aprendi que o sol nasce todos os dias. Mais cedo ou mais tarde, todos nós aprendemos. Com carinho, Daniel”


A mulher enxugou as lágrimas e sentiu o coração sorrir.

Um comentário:

Profª Rita disse...

Triste, mas doce, como um filme que nos faz chorar e, ao final, no deixa o coração leve...