terça-feira, 17 de março de 2009

Conto de Anjo


A voz de Matilde era trêmula, gaguejava, o padre teve de pedir calma e até cogitou levantar dali para pegar um copo de água. Apesar de que no confessionário as sombras servem para apoquentar e proteger as almas arrependidas, o homem da batina sabia que ali estava Matilde. Ele conhecia aquele timbre, aquela presença, sabia que ali do outro lado quem confessava era uma das pessoas mais mal faladas da paróquia, mulher bela, atraente, mãe solteira e que muitos comentários maldosos provocava entre os fiéis. Cidade pequena tem dessas coisas. Não seria aquela fina e peneirada película de compensado que deixaria dúvidas quanto à identidade daquela que lhe abria seus segredos. Desestimulado pela mulher, quanto a buscar a água, o padre ouviu da mesma a promessa de que dali em diante acalmar-se-ia.

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Filho de humildes sobreviventes da guerra, Luigi desde pequeno conviveu com as agruras da vida. Nos tempos de vacas gordas sua família conseguia uma parca refeição diária, mas geralmente aquele rapaz vivia na mais pura miséria. Luigi era filho único, mas não seria mentira dizer que ele tinha uma irmãzinha chamada fome. De todas as suas lembranças de infância a companhia da fome era a mais comum.

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O que fervilhava na cabeça do pároco era o fato de que Matilde sempre foi conhecida naquela minúscula cidade, como uma mulher sem honra e sem fé. Uma mulher que discutia, muitas vezes aos gritos, com aqueles que lhe perturbavam. Ela nunca freqüentava a igreja nas missas semanais. O que teria acontecido para que uma pessoa, tão cética a palavra de Deus, começasse sua aproximação a casa do Senhor, justamente pelo confessionário?

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Luigi desde sempre trabalhou. Obviamente que sua total falta de ensino não permitia um serviço mais nobre. Limpar celeiros, varrer quintais, transportar qualquer coisa. O pagamento invariavelmente era um prato de comida ou um pedaço de pão. Analfabeto da cabeça aos pés, o trabalho que ele mais gostava era limpar e capinar quintais.. Tinha prazer em deparar com terrenos apinhados de capim para em seguida vê-los nus como crianças inocentes. A localidade onde Luigi vivia já estava ficando um tanto quanto explorada e os quintais e serviços estavam começando a rarear. Foi nessa época que Luigi resolveu buscar novos horizontes. Ele rumaria ao sul.

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Um pouco mais calma, a mulher com os olhos cheios de água, começou dizendo que imploraria perdão pela sua fé tardia. O padre tratou de antecipar que Deus é infinito em sua bondade e benevolência. A mulher então iniciou sua história.

Há cerca de seis meses que meu filho vinha tendo fortes crises de tosse. As noites eram suplícios com os sons secos e sofridos vindos do quarto do menino. Ele sofria seguidos estágios de febres. Sei senhor padre, que meu relato deverá revelar quem sou, mas isso não muda a angustia e arrependimento e nem enfraquece meu desejo de ser perdoada.

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Depois de conseguir uma carona com um carro de boi até determinado local, Luigi se viu obrigado a seguir dali a pé. Com suas ferramentas às costas e protegido por sua velhíssima capa de lona escura, o jovem, porém sofrido Luigi seguiu trilha afora. Ele era muito alto e magro, um pouco curvado, provavelmente em virtude dos anos de labuta. Graças ao hábito de usar capucho, sua pele era branca e curtida como um lençol velho. Seus olhos centralizavam um carrossel de olheiras profundas. Ninguém nunca diria que aquele rapaz tinha menos de 20 anos. Luigi era uma caricatura ambulante, um coitado sem teto, sem futuro e sem noção de onde terminaria sua caminhada.

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O padre nesse momento pensou: Pobre Matilde, pecadora na sua fé e tão inocente em imaginar que sua voz já não tivesse lhe traído. O fato é que realmente seu filho estava muito enfermo nos últimos tempos. Na cidade todos já esperavam pelo pior. A mulher continuou:

O meu doce Gabriel vinha sofrendo tanto quanto o seu Cristo a espera da cruz. Nos últimos dias, além da febre e das dores cavalares por todo o corpo, o pobre e franzino ainda sofria com vômitos e tonturas. Todos os doutores que consultei, não deram nenhum sopro de conforto. Não havia mais analgésico, morfina ou qualquer outra coisa que fizesse efeito. Eu sabia que mais cedo ou mais tarde a morte bateria a porta de minha casa.
Foi ontem seu padre, durante a tempestade, minha casa ficou as escuras, depois de praguejar contra seu Deus e todos os outros deuses que pudessem existir, quando a minha já falecida fé ressuscitava na forma do ódio mais tenebroso da face da terra, eu ouvi o esmurrar na porta. A terrível tormenta com seus raios e trovões não poderia ser um melhor cenário para a chegada daquele anjo exterminador. Confesso que mesmo do alto de todo meu ceticismo eu estremeci ao olhar disfarçadamente pela janela lateral junto à porta. Lá estava, vestida de negro, com a pele branca e com os olhos fundos. Nas mãos trazia sua foice. A visão, daquela figura sob torrencial chuva e relâmpagos era o terror escarrado. Minhas pernas enfraqueceram, tremia muito. Foi nisso que corri até a cozinha, primeiro para me armar com uma faca ou cutelo, mas depois apenas para chorar de medo. Que pessoa tão tola poderia desafiar a própria morte com uma faca de cozinha? Agachei-me apavorada num canto perto do fogão a lenha.
Não sei quantos minutos passaram-se, mas resolvi correr até o quarto de meu menino. Eu estava afogada em puro remorso. Naqueles dias eu vinha pensando no que resultaria a morte de minha criança, naqueles dias eu vinha vislumbrando o final de um calvário, naqueles dias eu vinha, porque não dizer, desejando o fim de tudo aquilo.

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Apesar de todas as cicatrizes que a vida havia reservado ao pobre Luigi, duas coisas nunca o abandonaram: A sua bondade e seu medo de tempestades. Depois de caminhar por léguas numa trilha de matagal muito denso, o rapaz começou a sentir o peso do cansaço, da fome e o pior, percebeu que o céu estava escuro como chumbo, um temporal estava se armando. Era preciso apressar o passo, correr. O medo já inundava os pensamentos do miserável rapaz. Luigi não discerniu o que caiu primeiro, se a escuridão da noite ou as gotas grossas da tempestade. No breu do meio do mato, Luigi finalmente viu uma fagulha. O fio de luz vinha do que parecia ser uma pequena aldeia. A chuva, no entanto já estava começando a encorpar. Luigi descobriu então uma casa toda às escuras, provavelmente um local abandonado. Protegido da chuva pelo capucho, o rapaz esmurrou a porta, pois não acreditava que alguém morasse ali numa casa, sem luz e tão afastada do centro da aldeia. Notou que a porta era firme, resolveu buscar outra entrada. Uma janela nos fundos não estava trancada. Luigi não hesitou e pulou pra dentro da velha casa.

Ao tocar os pés encharcados no chão do quarto o infeliz percebeu a besteira que havia feito. Na cama deitado, um garoto dormia. Luigi ficou perplexo em ter invadido um lar, ele poderia jurar que a casa não tinha habitantes, sentiu um movimento as suas costas. Ao virar-se viu um oásis de luz surgir dentre a negra camada de escuridão. Os raios e relâmpagos revelaram o que seria o anjo mais lindo da face da terra. Luigi ficou ali e por milésimos de segundos tudo parou. O seu coração parou, o som do trovão emudeceu, as suas pupilas congelaram, uma lufada de vento vinda da janela aberta moldou o vestido daquele ser iluminado pintando um quadro vivo dentre as vistas da porta. Sua face era cor de pêssego, talvez aquele rosto tivesse a textura de um pêssego, com certeza teria o aroma e o gosto de pêssego, os olhos, os olhos, os olhos, Luigi poderia esquecer toda a infelicidade de sua vida, se pudesse navegar ou nadar por um segundo naqueles olhos. Cílios, sobrancelhas, o cabelo castanho avermelhado. O corpo semi revelado por detrás de esvoaçantes panos parecia criar tentáculos que clamavam por aproximação, fascínio, desejo, luxúria. Todos os pecados do mundo moravam naqueles quadris. Junto com os raios que riscavam os céus, uma lamina avassaladora de paixão penetrou fácil, como uma faca fumegante que corta um cubo de manteiga. Passado esse “big bang” temporal, onde um século esconde-se num milésimo de segundo, o rapaz caiu em si e pulou para fora daquele quarto, fugindo por debaixo da grossa chuva, com sua capa, seu capucho e sua foice.

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Seu padre existe perdão para uma mãe que deseja a morte do filho? Como poderei ser perdoada, se nem ao menos eu me perdôo.


Fui então, com as pernas pesadas como âncoras, para o quarto de meu filho. Eu iria pedir perdão para ele antes que o anjo maldito lhe levasse para outro mundo, eu iria abraçá-lo pela última vez e suplicar por perdão. Mesmo que ele já não falasse mais nada nos últimos dias e talvez nem ouvisse, eu iria lhe tomar nos braços e dizer que lhe amava muito.
Logo que abri a porta, um relâmpago iluminou o quarto escuro de meu filho. Lá estava do lado da cama dele, aquela criatura horrível, assustadora, aterrorizante. Seu olhar perdido, como o olhar de um coiote, parecia um predador a espreita de sua presa. Surpreso com minha chegada, numa fração de segundo pulou pela janela por onde, com certeza, havia entrado. Por incrível que pareça o meu coração naquele instante, apesar do susto, só tinha um único medo, o medo que eu não tivesse chegado a tempo de dizer ao meu Gabriel o quanto eu o amava e o quanto eu estava arrependida por todos os meus recentes pensamentos. Cheguei mais perto de meu filho e o vi com os seus cabelos oleosos e a pele rosada por conta das intermináveis noites febris. Foi ali que um sopro arrancou de minha alma toda a falta de fé. Ele estava vivo com os olhos abertos, fazia dias que eu não via seus olhos. As lágrimas borbulharam nas minhas vistas, louvado seja o Senhor, meu filho estava vivo e seu corpo não ardia mais.
Senhor padre, veja que milagre; Deus todo poderoso, salvou a vida de meu querido Gabriel debaixo do nariz da morte. Eu peço perdão, senhor padre, por toda a vida sem fé e sem regras que levei. Meu filho nascido de uma aventura de minha juventude foi por todos esses anos o único ser que amei de verdade. Ele, belo fruto, que apesar do pai ausente, trouxe alegria a minha amarga vida. Bastaram, alguns dias de enfermidade e eu fraquejei e por conta do cansaço e aflição cheguei a desejar sua partida. O que tenho que fazer para atingir a graça do perdão?

O padre sussurrou então para a inconsolável mulher que Deus encontra nos pântanos a beleza dos oceanos. Receitou algumas orações e disse que ela seguisse com seu coração em paz, pois agora seu filho estava com saúde e o milagre deveria sempre ser lembrado, como um sinal de que até nos corações e mentes mais empoeirados e enclausurados, a força do Senhor seria soberana. A mulher agradeceu o vigário, saiu do confessionário um pouco mais leve e foi cumprir sua sentença.

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O assustado jovem correu o quanto pode pela mata fechada. Sua foice trabalhou com voracidade, não havia matagal, arbusto, trepadeira ou qualquer menor vegetação que impedisse aquela jornada. Cansado e com o coração na boca, finalmente o rapaz encontrou uma toca que lhe protegeria da ira dos céus. Ficou ali agachado. Agora na sua cabeça, não havia água, não havia raios. Na sua cabeça o sol brilhava, e com o pensamento ensolarado, vinha o desconforto. Ele precisava pedir desculpas aquela mulher, ele precisava fazê-la crer que nunca invadiria uma casa com uma família. Ele precisava dizer algo mais. Esperou a chuva passar e ao amanhecer esperou a espreita até que a mulher saísse.

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Ao sair da igreja, grande foi o susto da mulher, lá do outro lado da praça estava de pé olhando diretamente para ela o anjo da morte. Sua roupa preta, sua face pálida e sua extrema magreza. Matilde não titubeou, mesmo antes de olhar direto nos olhos e na face do ente maldito, saiu em disparada e desesperada para outro lado. Seu nervosismo aumentou ainda mais quando viu que aquele vulto a perseguia. Andando muito rápido e tentando sumir entre vielas vazias daquela manhã de domingo, ela acabou entrando num beco sem saída. Na entrada do beco surgiu o perseguidor. O vento fazia tremular sua capa negra lembrando as asas de um abutre do deserto. O coração de Matilde estava descontrolado, batia acelerado e desesperado. Deus provavelmente não havia lhe perdoado. O Anjo viria acertar as contas.

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Finalmente ela saiu da igreja. Luigi jamais entraria na casa de Deus naquela situação. Suas roupas eram trapos imundos, sua capa endurecida pela sujeira parecia asas de morcego. Sua silhueta era a visão de um pobre diabo. Ele percebeu que ela desviou o caminho e resolveu segui-la. Vielas, e ladeiras vazias, foram logo vencidas. Seguiu-a até um beco. Beco sem saída. Agora ele poderia pedir desculpas. Porém antes de aproximar-se sentiu uma lança fervente rasgando-lhe a carne, em seguida outra chibatada e outra. Seu corpo fraco e arcado caiu de joelhos, revelando assim por detrás a origem dos tiros. Um soldado que por ali perambulava chegou a tempo para salvar a mulher. O pobre Luigi ainda tentou levantar o olhar para tentar dizer algo àquela que lhe enfeitiçou de paixão. Um último tiro ainda explodiu em sua nuca. O corpo agora estava caído. Luigi agora era o que sempre pareceu ser: Um homem morto. A mulher apavorada saiu em disparada sem nem mesmo agradecer o soldado. Naquele momento o que ela mais queria era o filho nos braços.

Aqui do alto eu vejo o quadro. A mulher agora abraçada com o filho. Filho saudável, curado por um milagre. Ela sabe bastante sobre o amor, mas sabe pouco sobre paixão. O miseravel morto, estirado num beco, sua maldita e exagerada magreza permitiu que minha flecha, naquele quarto e naquela noite, atravessasse fácil seu corpo. É bem verdade que o garoto do outro lado acabou sendo beneficiado. A paixão é poderosa, ela ressuscita corações congelados e salva moribundos. Admito que exagerei naquela flechada. Queria apenas dar um pouco de tempero na vida daquele miserável. Pobre Luigi. Enlouqueceria com tanta paixão. Bem aventurado Gabriel, que por um erro meu, prorrogou seu encontro com o desconhecido. Graças a toda essa história, estou condenado a ficar ainda muito tempo como querubim, um dia ainda serei um anjo de verdade. Estou cansado dessa sina de cupido.

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