quinta-feira, 5 de março de 2009

O Sortilégio do Corsário


Minha diversão quando garoto era correr pelos pastos e colinas entre cabras e bodes. Às vezes, quando algum tio trazia da cidade papel de seda e cordão, construía papagaios e com um pouco de habilidade, ajuda do vento e imaginação a brincadeira estava garantida. Lembro que certa vez, eu estava brincando de soltar papagaio perto de um grande penhasco com vista para um oceano agitado, quando percebi um velho vindo em minha direção. O homem de barba branca e rala usava uma camisa de flanela por debaixo de um colete de cor verde musgo. Tinha um chapéu esquisito, como um gorro, parecido com um que eu já havia visto em ilustrações de velhos livros. Notei que o homem apesar de aparentar muito velho, tinha certo porte e usava brinco numa das orelhas. Suas calças cor de areia pareciam imundas e achei estranho que ele usasse grandes botas feitas de uma espécie de lona crua e grossa.

O homem caminhou cambaleante até alguns metros de mim, parou, colocou um dos pés sobre um pequeno rochedo e ficou observando o mar revolto. Seu olhar era profundo, saudoso, parecia estar olhando para um antigo amigo. Tinha quase certeza que ele nem percebera minha presença. Aproveitei para olhar melhor suas características. Percebi que sua pele era muito queimada do sol, e que amarrando suas calças ao invés de um cinto, o homem tinha um cordão encardido. Pela sua boca entreaberta vi que seus dentes eram apenas cacos amarelados, notei também que ele tinha orelhas muito compridas e cabeludas. De fato tratava-se de uma figura de aparência um tanto quanto desagradável. Ficou ali cerca de dois minutos, até perceber minha companhia. Observou-me com ar de desinteresse e continuou olhando para o horizonte. Não contive minha curiosidade e perguntei:

--- O que tem no mar, que te faz pensar tanto? Perguntei.

O velho me olhou de cima abaixo e respondeu com outra pergunta:

--- Quantos anos você tem?

--- Quatorze! Respondi.

--- Pra alguém tão novo, você mostra muita coragem em dirigir a palavra a um cara como eu.

--- O que tens de tão temeroso, se não apenas uma cara velha e feia. Arrisquei.

O velho fez pouco da minha resposta, sentou-se no rochedo e bebericou um pouco de uma garrafa que só naquele momento eu percebi que levava consigo. Em seguida continuou:

--- Você está certo rapaz. De que adianta viver tanto tempo. Falou enigmaticamente.

--- O senhor tem quantos anos? Setenta? Questionei.

O velho, pela primeira vez mostrou os dentes de verdade. Eram realmente cacos amarelados e podres. Devia ter um hálito horrível.

--- Setenta!? Repetiu o velho emendando em seguida uma antipática gargalhada.
--- É isso que represento pra você garoto? Completou.
--- Sabe? Gostei de você! Gosto de jovens corajosos que chamam piratas de feios e velhos. Disse ainda ele.

--- Piratas não existem. Retruquei.

--- Eu sou o último pirata da terra.

Depois disso ele novamente virou-se para o mar e bebeu da garrafa.

Recolhi minha pandorga e me aproximei do embriagado homem. Senti um cheiro de suor, álcool e fumo de suas vestes.

--- Senhor pirata. Onde está seu navio? Perguntei, sabendo que os piratas já não navegavam os mares a muito tempo.

--- Meu navio o oceano ja engoliu. Meus homens todos já se foram. Tive que me transformar nesse rato que agora tu vês.

--- E o que queres agora? Porque estás aqui a olhar para o mar? Repeti.

--- Quero de volta o que me foi retirado. Foi aqui nesse penhasco que um corsário chamado Ramon de La Cruz, me contou o grande segredo e em seguida se atirou. Falou soturnamente o velho maluco.

--- Que segredo? Rebati.

--- O segredo da vida eterna! Rapaz, este homem que lhe fala tem mais de 400 anos, no entanto mais da metade disso, foi vivido como um desprezível rato. No começo eu tinha a aventura nas veias, amava navegar por ai, saqueando, barbarizando e estabelecendo minhas próprias regras ao mundo. Explicou. Em seguida emendou:

--- Desde que o mundo “adoeceu” e eu fui perdendo meus nobres parceiros de luta que eu venho definhando dia a dia. As coisas às vezes, parecem reluzentes como jóias, dobrões e pérolas, mas nem todo brilho é eterno. Hoje, nada me apetece. As mulheres já não querem nada comigo, os mares já não são universos misteriosos como outrora, nem mesmo uma fumegante sopa de siri parece ter o mesmo sabor. Sou apenas um velho andarilho, de vida eterna.

--- Qual o segredo, velho bêbado? A essa altura eu já estava querendo desmascarar aquele velho pinguço e mentiroso.

--- Quer mesmo saber? Disse o homem com um pequeno brilho nos cansados e profundos olhos.

--- Sim, quero ver até onde vai a sua historinha.

O homem olhou para o mar, fechou os olhos e vociferou em voz alta contra o vento!
--- Cá estou eu senhor dos mares, voltei atrás. Aceito o inferno de volta e repasso meu sortilégio a este rapaz!

Em seguida o homem caiu no pasto como uma maça madura que não agüenta mais na macieira. Só o barulho do vento se ouvia naquela região. Dei de ombros e fui embora com minha pipa, deixando o bêbado pra trás.

Fiquei sabendo no dia seguinte que um mendigo, paupérrimo e sem família tinha sido encontrado morto por ali. Naquele momento lamentei pelo velho maluco. Hoje, aqui olhando o que seria o grande penhasco, vejo que muita coisa mudou. Já não existem os campos verdejantes, há posadas, hotéis e o mar foi longinquamente afastado e bloqueado por um aterro e por diversas edificações. Crianças já não brincam por aqui, nem gostariam, não é mais um lugar agradável. Nasci em 1839, completei hoje 170 anos. Aquela visão do horizonte já morreu, ou melhor, está inutilmente viva para todo o sempre na minha triste lembrança daquela tarde de 1853.

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