segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

A Agulha o alfaiate e o deserto.


Entre gargalhadas e algazarra, ele engatinhava devagar com os dois moleques nas costas, Lavínia cobria os garotos com uma surrada manta cor de areia e assim fantasiavam as aventuras de um camelo sedento andando pelo deserto do Saara. Mas mesmo os camelos não são incansáveis e muitas vezes um esplendoroso Oasis não passa de uma enganosa miragem. Agora, ali , naquele beco fedorento, ao lado de amontoados de lixo e atrás de uma fumegante cortina de calor dos bueiros, ele tinha apenas, os olhos cheios de lágrimas, a alma cheia de saudades e uma sede do tamanho de sua angustia.

Existem situações na vida em que ninguém nunca apostaria num determinado desfecho. Altamiro, nosso personagem, protagonizou um cruel enredo do destino. Ele pagou sua felicidade com a moeda errada.

...

Atolado em dívidas até o pescoço o simpático alfaiate olhava com preocupação e marasmo através do letreiro na sua porta de vidro: “etaiaflA ueS O – orimatlA”. Era assim que ele lia seu nome e seu ofício, invertidos em letras arranhadas e desgastadas no vidro da porta daquela sala no velho prédio central. O aluguel estava quase quatro meses atrasado, tinha dívidas com o açougue, a mercearia, e sua conta na padaria fazia parecer que a multiplicação bíblica dos pães tivera sido debitada no seu nome. No retrato da mesa seus dois meninos: Adalberto e Antonio, dois moleques super espertos que deveriam agora estar arranjando alguma traquinagem no colégio público da cidade, lhe davam um sorriso apoquentador. O amor daqueles meninos, junto com a cumplicidade de sua mulher Lavínia, era todo o tesouro que lhe sobrara no mundo. Altamiro, na verdade, mesmo com os dias negros na alfaiataria nunca deixava de agradecer a Deus por sua família.

Foi numa manhã de céu carregado que adentrou a sala de Altamiro um senhor com olhar perdido e esbugalhado que mais parecia um sapo velho e resignado com a vida. Por alguns segundos Miro pensou ser um cliente, mas isso logo foi descartado face às roupas velhas do visitante. Um homem naquele estado jamais teria ambição de contratar um alfaiate. Não que o preço de Altamiro fosse alto, mas sim porque vaidade era algo que passava longe daquele pobre cadáver ambulante. O vivente esticou o braço e ofereceu um papelote a Altamiro. Era um bilhete de loteria.

- Sei que tens dívidas, e as coisas não andam boas. Disse o estranho.

- Obrigado pela tentativa, mas eu seria um irresponsável se gastasse agora dinheiro com jogo. Respondeu Altamiro.

- Quem esta lhe cobrando algo? Você só tem que aceitar sob uma condição.

O silêncio do alfaiate, fez com que o homem continuasse:

- Se fores premiado, deverás fazer o que é certo com o dinheiro. Esse dinheiro só deve ser usado por quem precisa.

O velho disse isso com os braços ainda estendidos em direção ao confuso costureiro.

- Pobre velho louco. Pensou.

Pegou o bilhete das mãos do esquisito e antes que pudesse agradecer, ao erguer os olhos viu apenas a porta se fechando e o vulto do misterioso indo embora.

...

Altamiro entrou radiante em casa, Abraçou Lavínia e deu-lhe um beijo que a fez a mulher voltar aos dezesseis. Tomou-a pela cintura e rodopiou feliz cantarolando uma melodia cinematográfica. Lavínia que há muito tempo não via o marido tão feliz, não sabia o que dizer. Em poucos segundos os garotos já estavam ao redor soltando suas risadas sem entender nada daquele momento de loucura do pai.

- Ganhamos na loteria minha amada! Vamos pagar todas nossas dívidas!

A morena de cabelos negros cacheados abriu um sorriso branco e intenso como se fosse uma foto do verbete Felicidade num dicionário ilustrado.

- Quanto Miro? Quanto ganhamos?

- Querida! O alfaiate agora diminuiu um pouco o esplendor de sua felicidade e explicou: Vamos pagar nossas dívidas e isso já é maravilhoso.

- Então não ganhamos tanto assim. Respondeu a agora serena Lavínia.

- O restante, eu já resolvi, nós doaremos para o Hospital e o Asilo da cidade. Completou o homem.

- Que bonito Miro! Porque não compramos com essa sobra alguns mantimentos? Assim pouparíamos o trabalho das enfermeiras de ter ainda que ir ao comércio. Lavínia imaginava uma cesta básica com pães, sucos, frutas e talvez uma garrafa de vinho.

Altamiro olhando nos olhos da mulher respondeu:

- Creio que eles poderão administrar o dinheiro da forma que melhor lhes convir Lavínia querida. Talvez queiram fazer alguma reforma, ou comprar veículos novos. A ambulância deles esta tão velha.

Nesse momento Lavínia sentiu algo errado no ar.

- Reforma? Ambulância? Quanto é esse “resto” Altamiro?

- O Prêmio total foi de R$ 18 milhões e após o pagamento do que devíamos sobraram 17 milhões e novecentos e noventa e seis mil reais.

Lavínia pareceu transformar-se. Sentindo veracidade nas palavras e nas intenções do marido, levantou-se andou alguns metros e desabou num choro absurdamente revoltado. Era o começo do fim.

...

Foram meses de discussões, advogados, debates televisivos, noticiário na porta da humilde casa de Altamiro.

Os rostos daquela família já estavam ficando enjoados em todos os telejornais do País. Lavínia, Altamiro e seus filhos eram tema de nove em cada dez conversas em todos os cantos da cidade, do estado e do país. Até no estrangeiro, um site ou outro comentou sobre o assunto. A tônica era sempre a mesma: “Homem louco”, “Pai de família incapaz”, “Pai desnaturado”, “Pobre e tolo”, e até “Golpista”. A verdade era que a novela estava fervendo, as vítimas eram Lavínia e os filhos, já o pobre Altamiro, nunca conseguiria fazer alguém entender que sua palavra tinha sido dada e que aquele dinheiro enviado por Deus tinha endereço à satisfação dos necessitados.

O certo é que depois de muito tempo e de muita briga, não havia mais nenhuma pedra sobre pedra no castelo daquela família. Adalberto e Antonio, afastados forçadamente dele, nem mesmo mais olhavam nos seus olhos. Lavínia que a principio conseguiu sustentar os filhos, sozinha, agora aguardava finalmente a liberação do dinheiro do prêmio na justiça. A parte de Altamiro continuaria onde desde o principio ele havia resolvido: No asilo e no hospital.

Altamiro nem tinha mais sala pra trabalhar. Desde o inicio daquilo tudo as pessoas o começaram a tratar com desconfiança, como se não fosse capaz de nada. Fora reduzido a uma insana inutilidade. Seus familiares, irmãos e tios, nunca o entenderam, tentaram até mesmo mandá-lo para algum tipo de asilo psiquiátrico. Já sem dinheiro, sem viço e sem vontade de coisa alguma, perambulava por becos e ruelas. Volta e meia visitava sua mãe e seu pai no cemitério. Tinha pra si que eles eram os únicos que o entenderiam se estivessem vivos.

Sentou-se num fétido canto de um obscuro recuo na cidade onde alguém deixou cair um maço de cigarros na sua proximidade. Nos bolsos sentiu um objeto pontiagudo, era uma velha agulha esquecida. Ficou observando seu material de trabalho, agora inútil, nos sofridos dedos machucados. Pelo orifício da agulha viu lá no fundo do beco o maço de cigarros no chão, ali estampado um camelo. Lembrou das brincadeiras com os filhos, lembrou de Lavínia, a velha Lavínia antes de tudo aquilo acontecer. Seus olhos ao contrario da garganta estavam inundados.

Adormeceu e sonhou. No seu sonho ele galopava num camelo e atravessava um portal dourado no formato do buraco de uma agulha.

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

As Aventuras do Capitão X


O som que parecia de um trovão acordou o Capitão X. Ainda muito sonolento, observou os leds e mostradores eletrônicos do painel da nave. Não sabia exatamente como tinha vindo parar ali, comandando aquele pequeno submarino. Olhou os mostradores de pressão, os ponteiros de velocidade, aceleração e estabilidade. Tudo estava checado e parecia correto.

Atordoado, e curioso encontrou algumas cápsulas e às vasculhou para ver se descobria algo para entender o contexto. Nada demais, apenas um punhado de proteínas concentradas que provavelmente faziam parte de um estoque planejado. Nem pensou em provar das proteínas, naquele momento sentia-se empanzinado. O sono era forte, queria um café, um fumegante cafezinho que fosse! Não, nada quente, o ideal mesmo seria uma coca-cola gelada, afinal de contas, pelo menos, um arroto seria muito bem vindo naquela hora. Ficou na vontade.

Olhou pelo estetoscópio o entorno. Não conseguiu ao menos decifrar em que oceano poderia estar. Havia só escuridão e a água parecia tão grossa quanto um viscoso mingau de clara de ovos. Chegou a ficar preocupado quanto ao progresso da nave naquele profundo e misterioso universo.

O led do radio transmissor chamou a atenção com uma piscadela. Rodou o botão de volume e percebeu pequenos ruídos. Seria apenas estática? Girou ainda mais o sensível seletor no sentido anti-horário e ajustou o equalizador de ruídos. Deu para perceber que eram vozes. No entanto o Capitão não entendia nada do que diziam, parecia uma espécie de língua diferente e complexa. Tentou em vão trocar informações.

Olhando pela pequena janela superior do submarino notou uma espécie de luz. Seria outra nave vindo de encontro? No mesmo instante tentou estabelecer contato piscando suas lanternas e de forma boba agitou os braços como se fosse possível que alguém pudesse vê-lo.

Alguns dias passaram e o capitão X, já começava a decifrar alguns códigos do rádio transmissor, ele já sabia quando as vozes alienígenas estavam exaltadas, afoitas ou soturnas.

Apesar do tédio e da ansiedade por todo aquele mistério, ele encontrava forças nas proteínas e principalmente no constante bater de tambores que cada vez mais eram perceptíveis. Pensava que em algum local não muito longe, ele encontraria essa outra nave ou quem sabe, emergiria para uma ilha onde alguma civilização mais atrasada e seus tambores pudessem dar explicações sobre toda a situação.

...

Entramos na pequena sala para a ultrassonografia, a médica, com voz gentil, fez as corriqueiras perguntas, e os tradicionais elogios. Olhei o gel sendo espalhado na barriga da minha mulher, lembrei que precisava comprar mousse de banana.

Na tela, aquela tradicional imagem parecida com um radar de um navio ou submarino. Estava tudo bem, graças a Deus. Sobre o sexo teríamos de esperar mais duas semanas. Fiquei prestando atenção no som, era como no fundo do mar. O nosso bebê, brincalhão, agitava os bracinhos. Ele nem sabe que existimos, pensei.

...

A luz reapareceu. As vozes eram exaltadas, os tambores acelerados, e o Capitão X, novamente de forma ridícula, mexia seus braços, como se alguém fosse notar. Ele não sabia de onde vinha e para onde ia, ele não sabia o que fazia ali, ele não sabia nem mesmo quem era ele e se realmente ele era “ele”. Ele só sabia que sua jornada precisava continuar.

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

O Ateu e o Teísta


Fazia cerca de seis meses que Rubens havia assumido o cargo de gerente daquela grande empresa. Foram meses consagradores, o humilde rapaz do interior que outrora guardava cada tostão para os estudos na capital, finalmente estava sendo reconhecido por seu esforço frente a livros, cadernos e aulas. Porém o seu primeiro grande desafio parecia só agora dar as caras: Ele precisava por ordem da diretoria e sob o pretexto de desafogar os custos e melhorar os lucros demitir um funcionário.

Naquela tarde cinzenta, ele aguardava um tanto quanto ansioso, na sua sala, a chegada do empregado para poder transmitir a péssima noticia. O sujeito no caso era o Sr. Cristovão, um pai de família, mais precisamente duas filhas e com idade ainda longe da aposentadoria. Cristovão era um homem prestativo que jurava estar bem encaixado naquela firma. Trabalhava ali há quinze anos e era amigo do fundador: o já falecido Anastácio. Desde que o velho Anastácio tinha morrido há três anos, a empresa continuou sendo tocada pelos filhos e o empregado Cristovão foi aos poucos sendo substituído por mão de obra de terceiros. O Senhor Cristóvão sempre colaborou da melhor maneira possível com os jovens estagiários terceirizados, passando-lhes toda a rotina e entendendo estar fazendo o melhor, contribuindo com o futuro da empresa. Era um pobre inocente criando pequenas serpentes debaixo do próprio nariz.

Outra faceta reconhecidamente famosa do Sr Cristovão era sua devoção pelas palavras de Deus. Com suas palavras suaves, seu jeito colaborador, educado e sereno e sob sua camisa social sempre abotoada até a garganta, ele muitas vezes lembrava um pastor, padre ou qualquer outra entidade doutrinadora. O homem de fato era uma companhia calmante frente a qualquer situação de crise envolvendo seus colegas de trabalho. Todos adoravam trocar idéias com o “seu Cris” e sair daquelas conversas mais leves.

Frente a esse quadro, a situação de Rubens era mesmo crítica. Ele sabia das características do empregado, sabia de sua doçura, de sua história e do dissabor que teria em comunicar-lhe a ordem. Para agravar tudo, o homem ainda tinha sido um velho amigo de seu falecido pai.

Finalmente ele surgiu na porta:

- Olá Sr. Rubens em que posso ajudá-lo?

Rubens respirou fundo e pediu para que Cristovão sentasse. Rubens usou toda a retórica necessária, foi sereno, foi sincero, não deu muitas voltas até dizer exatamente o que precisava. Rubens de fato era preparado e tentou dar a apunhalada com o cuidado necessário para que não houvesse muito sangue derramado. Cristovão bem que tentou acorrentar a humanidade em seus ossos, porém seus olhos reveladores e inundados já transbordavam quando ele conseguiu titubear as primeiras palavras:

Falou de Deus, do amor dele, da sua família, da injustiça, da sua história, de tudo que pudesse usar como defesa. Era como um soldado ferido de morte escondendo-se atrás de escombros inúteis, e esperando o sangue esvair totalmente de seu corpo. Era como um cadáver falante, um zumbi de boca seca, numa fumegante sombra de medo, decepção e angustia.

Lucros? Lucros maiores? Então não estamos falando de prejuízo e sim de Lucros maiores? Repetia quase que histericamente. Eu lhe imploro pelo amor do criador, isso não vai lhe fazer bem. Meu jovem, você está pisando em cima de um homem de bem. Não faça isso. Por seu pai, meu amigo, por sua dignidade, por Deus. Cristovão desfiava todos seus argumentos, chegando ao ápice de cair de joelhos frente ao jovem gerente.

Rubens, logicamente estava transtornado, mas o fato de ser ateu desde sempre fazia com que as citações do agora desempregado não pesassem em nada. Ele lamentava pelo homem, mas ignorava completamente seus argumentos e sermão.

Depois de repetir umas tantas vezes a expressão pelo amor de Deus, o Sr. Cristovão foi abruptamente interrompido pelo rapaz que gritou:

- Eu sou ateu, Sr Cristovão! Deus pra mim não existe.

Um silêncio absurdo tomou conta da sala naquela fração de tempo. Sr Cristovão ajoelhado, levantou-se ajeitou a camisa social cor de canela, deu uma enxugada nos olhos deu as costas e saiu da sala.

Rubens ficou pensativo. Parecia que tinha acabado de lutar contra um urso, tamanho era seu desgaste.

...

No caminho para casa, Rubens só queria poder sentar no sofá e ver um pouco de programação infantil com sua pequena Larissa de cinco anos. Desde que tinha assumido o cargo, aquele com certeza tinha sido seu dia mais ingrato.

Estacionou seu recém adquirido C4 Pallas na garage e subiu o elevador já afrouxando a gravata.

Notou estranhamente que a porta estava destrancada. Nem deu três passos para dentro do apartamento e sentiu um gelado metal tocar-lhe a nuca. Mais a frente viu sua filhinha e sua mulher, amarradas e amordaçadas.

A voz que segurava a pistola falou:

- Ajoelhe-se.

Rubens reconheceu a voz.

- Pelo amor de Deus! Disse Rubens.

- Hoje você me ensinou que Ele não existe. Respondeu o homem.

Rubens ainda cruzou com os olhinhos aterrorizados da sua pequena. Naquele instante sem saber, ele começou uma desesperada oração.

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Pietá


Ela chorava copiosamente. A imagem era emblemática. No seu ventre uma semente, no seu colo uma vítima.

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Assistindo aquele teatro de vampiros, Juca sentia-se heróico. Nas imagens em preto e branco da miséria e violência dentre os barracos, ele lembrava com nitidez de sua infância de terror. Favela da Piedade era sua terra natal. Quanto tiroteio havia presenciado? Quantas perseguições? Quanta insanidade? Agora ali, como de tempos em tempos, naquele horário político tudo era recapitulado.

Juca lutou, Juca teve ajuda, Juca estudou e conseguiu sair de lá. Ele sabia que alguns colegas dele, nem com toda ajuda do mundo sairiam de lá, ele sabia que sem sorte não se atravessa nem a rua, mas ele atravessou. Não era nenhum rei, vivia com um salário baixo junto com a esposa (que também trabalhava) e o pequeno Bento. Conseguia com esforço pagar o pequeno apartamento longe de todo aquele passado recheado de sirenes, gritos e pistolas fumegantes.

Sentia-se herói porque saiu de lá ileso. Foi sorte e esforço que o salvou daquele mundo bizarro e injusto. Desligou a TV e foi até o quarto onde checou que o filho de sete anos dormia tranqüilo e sereno como água de poço. Respirou com certo alivio.

Sua paz foi interrompida pelo toque do telefone. Sua irmã de dezoito anos, ainda prisioneira daquele mundo escroto da favela, com voz rouca e chorosa contava sua desgraça.

Juca nunca entendeu o que Lisandra via naquele bipolar e desequilibrado vivente chamado Ismael, o Rapadura, um típico mau elemento. Vendia crack a mando de Pato, o traficante, além de ser um exímio arrombador de carros. Era jovem, porém tinha um semblante judiado, alternava momentos doces com instantes de grande brutalidade na companhia de Lisandra. Eram namorados desde pequenos.

Pois naquela ligação, a notícia parecia jogar no valo todos os planos que Juca tinha para a irmã. Juca havia ali decidido o que fazer no dia seguinte. Ela tinha que fazer, ela tinha que consertar aquele erro. Estava certo, na manhã seguinte iria até a Piedade conversaria com Lisandra, e redesenhariam o quadro. Ele estava convencido que a irmã precisava de um herói.

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- Não, eu não posso Juca! Dizia a moça com lágrimas que desenhavam um tortuoso caminho nas suas faces. E continuou:

- Mamãe, nunca permitiria isso.

- Mamãe não precisa nem ter esse desgosto de saber disso. Respondeu Juca, observando o filho que se distraia com um encardido jogo de cartas numa remendada mesa plástica.

Lisandra ainda disse:

- Mas Juca, isso é assassinato.

- Assassinato? Lisandra querida, eu sei que não é fácil, mas você precisa desse sacrifício se quiser retomar os trilhos de sua vida. Veja eu. Lutei, hoje estou num outro mundo, salvo dessa barbárie e dessa imundícia. Juca apontou as paredes de compensado do modesto barraco.

- Aqui na Piedade, a melhor opção é ir embora! Disse ainda Juca.

O menino então interveio:

- A vovó esta chegando! Pela pequena abertura do barraco, via-se a velha Neneca chegando com seu jeitinho pacifico e seus braços fortes.

- Meu netinho! Mas o que trouxe essa bela visita?

A velha mulher sorridente abraçou o garoto e beijou o estimado filho no rosto.

- E você, o que houve? Perguntou ao ver a filha com rosto marcado por lágrimas.

- Já sei. Juca veio novamente tentar te salvar de Piedade, mas Ismael é sua ancora né?

Não adianta Juca, essa vai morrer abraçada àquela coisa ruim.

Aproveitando a ignorância da mãe, Juca vestiu o contexto com se fosse uma bela carapuça:

- Pois é mãe. Por isso vim aqui pra dar uma volta com Lisandra lá no meu bairro. Vou mostrar pra ela que ela esta perdendo.

- Vai, vai. Mas deixa meu netinho aqui pra eu matar saudade dele.

Juca pegou Lisandra pelo braço e os dois saíram.

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A clinica era pequena, os olhares eram pesados como chumbo. Ninguém ali estava bem, todos de um jeito ou outro tinham suas almas nubladas. Quando a atendente chamou, Lisandra apenas mirou seus olhos inundados para o irmão.

Foi ali que o coração de Juca foi tocado. Ali na frente dele, não reconheceu mais a irmãzinha de outrora. Sentiu sua certeza voar como folhas secas frente a um tufão. Viu uma mulher com uma expressão horrorizada, viu uma jovem inocente com um olhar que temia uma espada que lhe penetrasse por dentre as costelas e lhe arrancasse as entranhas. Entendeu que ela agora era outra pessoa. Compreendeu que quando uma vida surge, outra, de certa forma, vai embora. Aprendeu que o dia do nascimento não é no aniversário e nem na concepção. O dia do nascimento é quando alguém se torna pai ou mãe e quando isso acontece nada mais será como antes. Não era mais Lisandra ali. Era sua mãe, era seu pai, era ele mesmo. Com os olhos já transbordados segurou firme a mão da irmã e pediu desculpas.

- Pensei em ser seu herói destruindo sua vida, perdoe-me!

Abraçou a moça e os dois saíram dali sem olhar para trás.

A atendente esboçou um pequeno sorriso e pensou:

- Quando eles desistem meu coração regenera um pouquinho.

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Já estavam perto de Piedade. Haviam combinado no caminho que logo que possível sairiam dali e de alguma forma criariam aquela criança com dignidade. Estavam, de certa maneira, até excitados com a idéia de contar a Neneca sobre o novo neto e a Bento sobre o primo.

Na entrada da ruela que daria no barraco de Lisandra, perceberam uma estranha movimentação. Sentia-se naquele tumulto, um clima soturno de agonia no ar. Juca parou o carro e os dois saíram correndo a pé em direção a pobre moradia. Afastavam quem tivesse no caminho: Curiosos, vizinhos, desocupados, desgraçados ou não.

Bem no meio daquilo que chamavam de casa, estava o corpo. A velha senhora chorando veio de encontro ao filho tentando fazer o impossível, tentando explicar o inexplicável.

- Foi aquele desgraçado, o Rapadura. Ele esteve aqui. Entrou atirando como se estivesse possuído.

Juca tinha a mãe lhe abraçando forte. Lisandra apavorada correu em direção do pobre e ensangüentado Bento.

Juca não sabia se a mãe estava lhe consolando ou queria ser consolada. Juca nem pensava direito. Na sua frente, nos braços de sua irmã, seu filho estava ferido mortalmente.

Ela chorava copiosamente. A imagem era emblemática. No seu ventre uma semente, no seu colo uma vítima.

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Nave G 1:3 - Um Conto de Ficção Científica


O projeto do experimento já estava adiantado, o cenário havia sido minuciosamente preparado e imaginando-se a coisa pronta percebia-se um trabalho valoroso. Sem duvida a obra prima estava praticamente definida pra ser finalmente executada. No entanto a idéia ainda carecia do tempero, do desafio, do imponderável, aqueles que ali seriam distribuídos, naquele fabuloso ambiente, seriam coadjuvantes dessa nova concepção. A idéia era desenvolver o Protagonista com um novo elemento. Um dos técnicos responsáveis pelo setor de desenvolvimentos emocionais já vinha há algum tempo trabalhando com algo nesse sentido e seu discurso era arriscar mais.

O Arquiteto chefe não estava bem seguro quanto a inserir esses riscos no projeto do Protagonista. Seu medo era que assim como o conceito das sementes, essa função pudesse passar um pouco dos limites.

Num debate na grande mesa de reuniões a polêmica foi muito discutida.

- Acho que criar essa brecha nesses primeiros protótipos pode até não fazer efeito em curto prazo. Porém temo pelo desenrolar mais a frente. Dizia, um dos projetistas mais conservadores. Ele continuou:

- Temos que respeitar nosso princípio básico de harmonia. Esse plus poderá desequilibrar todo o trabalho.

Luiz C.F, o técnico mais defensor da idéia em questão, respondeu:

- Ninguém aqui, quer esse projeto apenas como uma obra de arte que impressiona por sua perfeição. Não tenho dúvidas que sem esse “algo mais” a coisa vai se perder no tempo e na obsolescência.

- Senhores! Eu gostaria de mostrar esses fluxogramas que desenvolvi, com base em prospecções teóricas desse fragmento específico da experiência. Disse um jovem estendendo na mesa uma serie de anotações holográficas. Ele continuou:

- Vejam que a inserção de elementos “emo-racionais” poderá sim ocasionar uma veloz reação em cadeia, o que poderia causar erros ou ocasionar avanços. Nesses fluxogramas holográficos eu demonstro que o primeiro problema seria um natural questionamento sobre nossa ingerência, nossa importância ou até nossa existência.

- Bobagem! Isso seria facilmente resolvido com pequenas inserções no decorrer do tempo, conforme necessidade. Respondeu secamente Luiz C. F.

- Mas lembre-se engenheiro Luiz, que um de nossos propósitos nessa empreitada é dar apenas o start, sem muitas interferências no funcionamento restante. Falou o Arquiteto chefe, e continuou: De qualquer forma eu não vejo grandes obstáculos nesses tais questionamentos ou dúvidas.

- Mas Senhor, replicou o jovem, aqui nos fluxogramas também observo que essa diferenciação poderá prejudicar em muito o desenvolvimento das peças coadjuvantes sejam da mesma família ou não. A função “emo-racional” seria um desastre frente à absoluta harmonia pensada para todo o entorno do projeto. Mais adiante será praticamente certo o desenvolvimento de vícios e defeitos como: O corrompimento dos limites de respeito a tudo, a sobrepujança das vantagens sobre os coadjuvantes, o egocentrismo em todas as questões, as dissimulações para com suas próprias consciências, a arrogância dentre suas diferenciadas classes, a busca pelo fácil que dificultará o grupo, a voracidade pelo poder alimentada por uma obvia e mesquinha ganância, a competição sem escrúpulos por remédios inventados, a maldade planejada, a crueldade viciosa, os instrumentos de sofrimento, os artifícios de ataque, a estupidez da autodestruição e outras incoerências. A lista é longa. Do lado dos avanços tudo poderia ser resumido na capacidade de entender tudo e por conseqüência disso a possibilidade de uma pacifica coexistência. Mas advirto senhor: Acho pouco provável essa hipótese positiva.

O Arquiteto ficou então pensante.

Em seguida Luiz C.F pediu a palavra.

- Acho que essa é nossa chance de executarmos um trabalho verdadeiramente digno das nossas possibilidades. O elemento “Protagonista” será nosso maior feito, teremos um produto verdadeiramente rico. Esta nova função de forma alguma poderá trazer descontinuidades. Admira-me que alguns colegas discursem contra essa brilhante propriedade de ampliação vertiginosa de capacidades. Não acredito e acho que seria ilógico que estes produtos fossem se destruir tendo essa ferramenta tão valorosa. Na verdade soa-me como piada esses fluxogramas e suas conclusões pessimistas.

O Arquiteto continuou quieto.

Todos aqueles cientistas continuaram discutindo por algum tempo. Depois de argumentações de todos os lados, o chefe finalmente resolveu pelo uso da novidade no projeto dos Protagonistas. O Arquiteto resolveu assumir os riscos. Porém resolveu que nunca haveria ajustes. Apesar do alerta quanto às possibilidades de fracasso, ele resolveu dar crédito aqueles produtos. Pensava que se liberasse um fragmento de “alma” àqueles Protagonistas, teria uma gratidão eterna como garantia de que as coisas nunca desandariam. Sim, ele estava convencido que o projeto seria uma sucesso.

Depois de brindarem com um delicioso e fumegante fondue regado com geladíssima champagne, a cerimônia de lançamento do projeto foi finalmente iniciada com as palavras do Arquiteto chefe.

- Haja Luz!!!!

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

Fim de Tarde no Trapiche


17 Horas e 20 Minutos

Naquele fim de tarde fui até o trapiche para esperar o sol dar seu "até breve". Aquelas tardinhas de inverno propiciavam uma deliciosa iluminação dourada. Era um elixir para meu cotidiano parecer um pouco menos cinza. O vento gélido obrigava-me estar bem agasalhado, mas não seria mentira dizer que um facho da luz solar na minha gelada face chegava como uma tépida caricia. Pequeníssimo verão entre meu gorro e meu cachecol. Era difícil acreditar eu não tivesse companhia de outros pra mirar um espetáculo tão prazeroso e ao mesmo tempo tão singelo. Dali, encostado no protetor do trapiche, eu podia ver os fundos da Companhia de Pesca, com suas pequenas baleeiras e outras embarcações com fumegantes chaminés. Talvez aquela leve maresia, fosse o grande motivo que afugentava outros transeuntes como eu.

Naquela tarde, especialmente triste, vi um velho lá do outro lado, sobre a plataforma de cimento da casa de pesca. Ele olhava o mar como se esse fosse um cão de estimação, com domínio e superioridade. Deveria ser um dos pescadores que ali trabalhava. Olhou de um lado e de outro. Passou os olhos pela minha figura e não me percebeu. Aproveitei para analisar seus movimentos. Era um senhor de mais ou menos sessenta anos. Vestia um pesado capote e um gorro escuro, típico de velhos marinheiros.

Tentei imaginar a vida daquele homem. Um conhecedor dos mares?! Com certeza já havia viajado muito. Tinha movimentos cuidadosos e ao mesmo tempo parecia convicto do que fazia. Depois de um tempo, entendi melhor. Ele jogava no mar o que provavelmente seriam sobras de pescas. Vi naquele pesado fardo de restos toda minha angustia, pois me lembrei da minha situação.

Desde que perdi minha esposa, brutalmente assassinada por um psicopata, tive de cuidar sozinho da minha filha. Ela tinha, na época, três anos e agora transformara-se numa adolescentes cheia de dúvidas e carente de uma mãe. Não eram poucas as nossas discussões e naquele dia mesmo, mais cedo, acabaramos de ter uma briga muito intensa. Como sempre ela desdenhava de minha super proteção e dizia que não agüentava mais tanta proibição pra tudo. Ela não entendia meu trauma, aliás nunca entenderia. Afinal de contas era só um anjinho no berço quando recebi o policial e o inspetor na minha casa naquela estúpida noite chuvosa.

O pesado saco ao cair no mar parecia fazer meu coração afundar junto. Será que eu deveria mergulhar atrás? Matar-me? Perdi minha querida mulher de forma tão injusta e agora, minha pequena me odiava. Ainda lembrei sua última frase antes de eu dar as costas e sair:

- Isso, saia daqui, vá embora. Eu odeio você e seu medo de tudo!

Eu nem olhei pra trás.

Agora ali no trapiche eu invejava aquele senhor. Um homem maduro que certamente tinha criado bem seus filhos e no fim de um dia estafante de trabalho teria uma esposa o aguardando em casa com uma deliciosa sopa quente e provavelmente filhos educados que o amavam.

....

16 Horas e 48 Minutos

- Mais uma, mais uma, pequeno John!

O velho sozinho falava e já com dificuldade conseguiu jogar o pacote no bagageiro da sua enferrujada pick-up. Pigarreou e depois de checar os arredores entrou e ligou o barulhento motor.

No painel do carro uma foto amarelada de uma mulher de olhar vago e sorriso encabulado ao lado do próprio. Olhando para o retrato o velho vociferou:

- Olha só vagabunda! Agora tenho mais uma putinha que vai te fazer companhia no inferno. No chão do carona um monte de garrafas de uísque vazias. O carro era uma verdadeira pocilga. Até o cheiro era nauseante. Antes de dar arrancada escarrou pela janela do veículo.

Dirigiu por algumas quadras. No caminho, em silêncio, lembrou da esposa, a mulher da foto, seu olhar ficou pesado e seus olhos cheios de água. Falou pra si mesmo:

- Vagabunda! Vagabunda! Porque fizesse isso comigo? Um homem como eu não pode ser traído. Deverias ser sempre minha do meu jeito. Mulheres vagabundas como você tem de ir pro inferno. Você foi a primeira e me viciou nesse negócio. Muitas outras ainda seguirão você.

Continuou falando insanamente:

- Essa menina deu trabalho pequeno John! Essa putinha de hoje deu trabalho. Hahaha. Mas, pequeno John, viu como ela abriu a porta com muita facilidade? Que putinha burra, pequeno John. Que burra!

Parou o carro em frente à Casa de Pescas. Antes de sair colocou o gorro preto para proteger da tarde fria. Deu uma olhada geral, ergueu com certo esforço o saco e vigilante entrou furtivamente no prédio em direção ao pátio externo dos fundos.

O mar estava cinza feito sua própria vida. De novo olhou ao redor: Ninguém.

Sem cerimônia atirou a adolescente empacotada na água profunda que batia na plataforma. Deu as costas e saiu.

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15 Horas e 52 Minutos

- Não deveria ter dito aquilo pra ele, meu paizinho. Ele é o único que tenho comigo. Mas ele me irrita com sua super proteção. Como fui grossa.

A garota estava com o coração cheio de remorso.

Ao ouvir a batida na porta, animou-se.

Foi correndo abrir.

- Pai! Desculpa...

Sua frase foi interrompida com a visão.

Não era seu pai. Na porta um velho feio e com aparência de bêbado tinha no olhar uma insanidade diabólica.

sexta-feira, 30 de julho de 2010

O dia da Liberdade


Abriu os olhos e viu que o dia havia chegado finalmente. Seu corpo, com certeza, estava debilitado em face da noite cheia de pesadelos e muito mal dormida. A questão é que a manhã havia florescido e aquela escuridão que parecia eterna em certos momentos, prometia nunca mais voltar.
Olhou pela pequena janela e viu o sol ainda tímido por detrás de belas nuvens rosadas. Sentiu um doce cheiro de amendoim. Achou engraçado e lembrou-se do doce preferido. Tanto tempo esperando por aquela aurora e finalmente tudo seria resolvido. Tinha certeza absoluta que a noite que estava por vir seria diferente de todas as angustiantes noites de até então.

Em pouco tempo o velho amigo surgiu na porta, este veio com um olhar cúmplice do tipo que sabia o quão especial era aquele amanhecer. Disse um “olá” ríspido, o jeito seco de sempre, poucas palavras, a sombra de seu chapéu não permitia ver com exatidão sua expressão, mas poder-se-ia apostar que tinha aquele marcante olhar vago.

Saíram dali e foram para o pátio, onde um calor agradável remetia a outras primaveras e aos deliciosos desfiles festivos na cidade natal quando ainda criança. Eram tempos tardiamente valorizados. Nessas lembranças estavam lá seu irmão, sua mãe e sua prima, todos vestidos com roupas dominicais e empolgados com os carros alegóricos e suas personalidades. Numa fração de segundo o pensamento já estava novamente no pátio, no calado amigo e naquele amanhecer.
Ficaram ali por um tempo. Na volta ao interior do prédio, um vizinho ainda estendeu e mão e esboçou algo entre um sorriso e um alento.
Já dentro e olhando a fumaça que saia da caneca de café fumegante até a pequena abertura gradeada perto do teto, ficou, em pensamento, repetindo consigo mesmo que logo estaria definitivamente livre. Livre como um pássaro, livre como uma criança. Não conseguiu conter um sorriso e as lágrimas nos seus olhos.

Depois do almoço o amigo trouxe o pequeno prato com cinco cajuzinhos de amendoim. Uma pequena surpresa como despedida, disse. Abraçaram-se. Cada um daqueles docinhos foi devidamente saboreado. Se a liberdade tivesse gosto, o gosto seria esse. Pensou.

Chegada a hora. O amigo surgiu soturno com mais dois. Foram caminhando pelos corredores, rumo à liberdade absoluta. Sentia olhares de vizinhos na sua direção, nas suas costas. Uns pareciam invejar, outros pareciam temerosos com sua libertação. Na mão apertou a foto da esposa e filha juntas sorridentes. Fechou de leve os olhos e sorveu cada gota daquela desumana saudade que lhe invadiu. Sussurrou baixinho o nome das duas.
Um dos homens abriu uma pesada porta de grade. Atravessaram mais dois ambientes e finalmente chegaram.
Levou a foto até o peito perto do coração. A cadeira estava toda preparada e o espaço limpo. As demais cadeiras estavam todas vazias. Ninguém tinha aparecido. No relógio faltavam dez minutos para a esperada liberdade. Um Homem com um gorro nas mãos, o padre, outro perto do telefone. Sentou-se na cadeira. Estava calmo, tranqüilo, a verdade era que há anos temia por aquele momento e agora sabendo que tudo terminaria sentia um mar de felicidade inundando seu ser. Adeus noites de pesadelos, adeus tardes de desespero, adeus insônia maldita, adeus pesar na consciência, adeus prisão da alma. Desde criança não sentia tanta calmaria. Pelo cansaço de anos de noites mal dormidas não pode evitar um cochilo.
Foi assim. Esse foi o presente final que Deus lhe deu. Uma vida equivocada, decisões estúpidas, ações imperdoáveis e agora, o condenado a morte, foi embora, em paz, abraçado ao retrato como que segurando uma estrela e dormindo como um anjo diante de uma constelação
.

sexta-feira, 4 de junho de 2010

Love Story Mexicano


Juanita era uma linda mexicaninha adolescente, tinha cabelos escuros e brilhantes como as teclas menores de um piano e a pele sedosa e jumbo, dando a impressão que estivesse sempre saindo encharcada de uma xícara gigante de café com leite. Educada como a maioria das pequenas meninas de San Martin, Juanita tinha um comportamento tímido e recatado. O maior sonho daquela bela garota de olhos graúdos feitos dois potes de mel e face desenhada por compasso, era ter um casamento feliz com filhos saudáveis com um homem trabalhador e honesto.

Foi numa festa de Dia dos Mortos que ela conheceu aquele que mudaria pra sempre seu destino. Com uma calça extravagante listrada e uma camisa salmão, Pedro Henrique surgiu dentre as bandeirolas coloridas, impactante como o príncipe dos príncipes. Eram antagônicos as cores e o tecido singular da sua vestimenta comparada com sua enclausurada e prisioneira timidez. Pedro Henrique tinha uns 17 anos e era o embaraço personificado em toda sua excelência. Garoto educado, com linguajar por se dizer até surpreendente para sua idade. Um romântico daqueles mais clássicos. Seu coração com certeza não seria algo como um punho sangrento dentro do peito e sim aquele coração clichê vermelho acetinado tão comum em cartões de dias dos namorados.

Juanita o viu de longe, perto da barraca das Maças do Amor. Mas que tapa violento sentiu. Aquele quadro vivo só faltou gritar aos seus ouvidos:

- Eis seu príncipe, eis aquele que certamente foi seu pedaço em outra encarnação. Eis aquele que na festa dos mortos veio fazer nascer uma nova Juanita. Não existia qualquer sombra, não existia qualquer duvida. A lua daquele cenário na verdade virou sol, era paixão avassaladora.

No entanto como em toda paixão platônica o obvio nunca acontece e o fácil nunca é o certo. Juanita digeriu aquele encanto e ao invés de aproximar escondeu-se por detrás do carrinho de pipocas. Carmencita a amiga inseparável e astuta percebeu todo aquele ato e tomando a companheira pelos braços avisou:

- Vai lá, fala com ele. Apresente-se.

Nesse momento apareceu no terreno o temido Sr. Astolfo, homem gordo e rude de olhar sisudo sob grossas e arrepiadas sobrancelhas. Astolfo, pai de Juanita cuidava da filha como uma onça cuida de seus filhotes. Sua menina seria menina enquanto vivesse sob a aba de seu chapéu revestido de couro. Com um pai daqueles, e sem mãe, a menina com certeza teria sérias dificuldades em conseguir desaninhar. Pois esse iceberg de dificuldades mesmo assim pareceria um agradável caminho de seixos frente ao amor despertado no coração da jovem morena. Sob o queixo do pai, a garota desafiou o perigo e dali ficou observando seu Pedro Henrique mais adiante. Todos olhavam os coloridos fogos de artifício, mas Juanita nem ouvia os estouros.

Nem foi preciso a moça se aproximar do rapaz. Num rojão que ricocheteou pelo ar o olhar de Pedro acabou cruzando com aquela que lhe paquerava. Foi maior que todos aqueles fogos juntos. O menino sentiu a vertigem correr todas as suas veias. Como era linda, um doce da cor de uma bala de leite, certamente naquela noite ela estava no auge de sua beleza. Vejam só que estranho, ele nunca a tinha visto e sentiu que ali ela estava no auge de sua beleza. Aproximou como que hipnotizado atropelando pelo caminho a própria timidez. Ficou segundos olhando para aquele rosto angelical numa distancia que poderia tocá-lo. Nem percebeu a fumaça que saia do nariz do touro que presenciou todo o sublime momento, o touro de chapéu de couro, o touro de olhar sisudo, o touro que se chamava Astolfo.

Num ato repentino e bestial, o velho Astolfo pegou uma panela de vinho fervente de uma barraca de quentão e jogou no rosto do inocente rapaz. Foi algo grotesco, um movimento animal, de uma brutalidade inexplicável. Com a mão no rosto o pequeno e atordoado Pedro caiu de joelhos no chão. Houve uma grande confusão, policiamento, empurra-empurra, gritos e correria. Ninguém nunca poderá responder qual a dor maior, se a angustia sufocante de Juanita ou a absurda ardência nos fumegantes olhos de Pedro Henrique. A verdade é que ele perdeu a visão e ela a voz, tamanho o seu estado de choque.

Aquela noite foi muito comentada. Ninguém nunca percebeu a verdadeira vítima daquela Festa dos Mortos. O amor ali foi agredido por uma estúpida ignorância. O tempo passou, foram dias, meses e anos.

....

O escuro bar tinha pouco movimento. O forasteiro pediu um pequeno copo de conhaque, encostou-se no balcão e ficou observando o discreto palco. Ali sentado sobre uma cadeira de palha e um acordeão no colo um homem cantava uma triste e bonita canção de amor que dizia sobre uma mulher de olhos e cabelos negros. O forasteiro percebeu também que uma mulher ficava sentada bem em frente ao cantor com os olhos cheios de lágrimas. Num gesto típico questionou o barman, que lhe disse:

- Ela sempre fica ali, admirando esse cantor. Nem sei se ela sabe que ele é cego. Nunca abriu a boca pra dizer nada.

O forasteiro tomou mais um gole do conhaque, entregou uma moeda ao homem do balcão e saiu do bar seguindo sua vida. Na sua cabeça aquela triste canção de amor ficou por muito tempo ecoando.

sexta-feira, 9 de abril de 2010

O Suplício

Assim que adentrou pela grande porta dourada a mulher lembrou o que aconteceu. Veio a sua mente o rosto de uma criança olhando para ela segundos antes do acionamento e da explosão. Foi interrompida por um homem vestido com roupas leves de linho branco.

- Senhora por aqui, sente-se lá naquela cadeira à esquerda, por favor.

A mesa enorme, parecia esculpida em penedo. Tinha muitas cadeiras distribuídas ao seu redor, quase todos os lugares estavam ocupados. Percebeu que alguns falavam alto, outros nem tanto e diversas eram as línguas. Percebeu alguns demonstrando desanimo com a cabeça entre as mãos apoiadas sobre a superfície do rochedo. De modo geral estavam todos muito desgastados, com olheiras e despenteados. Daria para apostar que não dormiam há muito tempo.

Havia ali uma extensa gama de tipos, gente com cara de importante com notas de dinheiro amassadas e caindo dos bolsos de seus surrados ternos, outros aparentando mais humildes e mostrando indiferença ao estado pútrido de suas vestes. Mulheres com belas roupas e, no entanto com faces resignadas e exaustas. Jovens com cara de velhos e velhos com cara de mortos. Sem duvida uma reunião de desgraçados.

Não conseguiu identificar exatamente o contexto do assunto daquele soturno conclave, mas percebeu que não havia acordo nenhum. Uns citavam escrituras, outros faziam não com a cabeça. Na cabeceira um senhor muito velho, que parecia um mestre, mirava a todos com um olhar distante e frio. Este indivíduo de vestimenta aveludada e vermelha, com o rosto parcialmente oculto sobre um pesado capuz tinha ao seu lado um capataz gigantesco, sujeito amedrontador com mandíbulas ressaltadas, sobrancelhas peludas, dorso e braços fortes como guindastes. Nas descomunais mãos desse monstruoso homem pendia um ensangüentado chicote com pequenas limalhas de ferro na ponta.

Um pequeno sujeito de turbante quadriculado e componente da mesa, hora se exaltou e deu um empurrão noutro que lhe dizia algo. Na mesma hora o gigante brandiu o forte braço esquerdo e aplicou uma violenta e estúpida chicotada nas costas do miúdo. O sangue espirrou no rosto de outro infeliz sentado mais a frente.

O velho encapuzado então bradou com voz firme.

- Sem consenso geral, não haverá encerramento dessa reunião.

Em seguida a mulher, ainda confusa, sentou-se no seu lugar e olhou mais detalhadamente a volta. Viu que o lugar era muito mais que desagradável. Não havia cor, não havia qualquer coisa que lembrasse vida, a não ser aquelas tristes pessoas da mesa. Percebeu então que tanto na sua retaguarda como nas costas de todos havia uma pequena janela.

Pela abertura lá fora viu pessoas caminhando, correndo e sorrindo. Eram adultos, crianças e idosos confraternizando alguma coisa. Crianças soltavam pipas, jovens corriam de bicicleta, outros conversam assuntos leves e descompromissados. Não tinham expressões pesadas, pelo contrario pareciam viver um eterno bem estar. Olhando por mais tempo reconheceu, dentre os tranqüilos, sua mãe. A velha e saudosa Mama estava lá sorrindo e conversando com outra senhora.

- Mama, Mama! Tentou gritar.

No mesmo instante sentiu uma espécie de rasgo tomar-lhe o pescoço. A dor foi como se uma peçonhenta cobra cravasse e arrastasse suas presas por toda sua coluna. Sentiu-se zonza e chegou a saborear o gosto de sangue na boca. Tossiu e ainda conseguiu virar o rosto pra ver o gigante afastando-se com o chicote pingando um grosso caldo carmim. Até tentaria dizer alguma coisa, mas a insuportável dor do açoite e uma nova intervenção do velho encapuzado não deixaram.

- Mulher. Estas aqui para o consenso. Nada de descontração. Vire-se para a mesa!

A mulher sentiu o sangue ferver, mas a dor ainda era soberana. Sua Mama estava ali fora feliz as suas costas, Mama querida que os malditos soldados assassinaram, e ela nem poderia trocar um aceno? Estava revoltada, e mais do que isso estava começando a entender. O temor foi invadindo seu coração como uma névoa fumegante e venenosa.

Os berros, insultos e chicotadas continuavam na sala. Na grande porta dourada uma palavra respondia tudo: Inferno.

...

No jornal da banca, um pequeno órfão viu a foto da sua mãe. Na legenda da foto ele não entendia o que estava escrito, era pequeno e ainda nem sabia ler.

“Dimitra Shanakowa é a suposta Mulher Bomba do ataque no metrô que matou mais de 30 pessoas.”

quarta-feira, 17 de março de 2010

Os Tolos dos Tolos


Antes de iniciar sua rotineira palestra semanal o Pastor Euzébio fora surpreendido com uma ligação no seu celular, sua menina estava em crise e havia sido levada as pressas ao hospital. Pensou consigo mesmo sobre a maldição daquela estúpida doença que maltratava tão indefesa criança e que era um segredo de sua família. Câncer no sangue, mais conhecido como Leucemia era o inferno vivido pela pequena caçula. Digeriu a nojenta revolta dentro de seu peito, respirou fundo e como se tivesse mandíbulas de pedra abriu um sorriso mecânico para as centenas de fiéis daquele auditório.

O co-fundador da Igreja Céu na Terra há muito já abandonara o que aqueles pobres trouxas conheciam como fé. Não sentia nenhuma ponta de sentimento em relação àquela gente, via ali seu ganha pão e nada mais que isso. Negócios era sua religião e aquele negócio possibilitava à sua filha os melhores hospitais, médicos e remédios. Antes de começar ainda fingiu mentalizar uma espécie de inspiração para iniciar seu sermão. Sempre fazia isso, e sempre pensava nessas horas na sua família e na sua frágil menina.

Tinha uma oratória fantástica, jogava as palavras no ar como se fossem pássaros soltos que sempre encontravam o ombro perfeito de algum ouvinte desesperado por algum motivo. Suas citações bíblicas ou inventadas eram cirurgicamente depositadas nos corações e mentes daquele povo humilde, sedento e cheio de culpas. Rasgava o silêncio com frases empanzinadas de uma eloqüência feroz. Era sem duvida uma espécie de ilusionista. Transformava desespero em esperança.

Dali de cima do palco observava seus seguidores, gente feia, mal vestida em sua maioria. O cheiro da ignorância era tão forte que às vezes parecia ser fumegante, parecia sair daquelas cabeças imbecis como fumaça. Sempre “brincava” consigo mesmo procurando dentre a multidão os seus comparsas. Lá estava o velho Raimundo e sua falsa paralisia, na segunda fila percebeu Dona Zilda e sua teatral dor nas costas, ainda tinha mais três que estavam escondidos no meio daquela gente. Conduzir uma Igreja como a Igreja Céu na Terra, requer muito trabalho, afinal de contas é necessário ter uma série de cuidados com os atos teatrais. É preciso uma equipe grande, bem treinada e muita organização para que não se exponha furos entre uma cidade e outra. Uma constante metamorfose nas pessoas, nas enfermidades e nos atos exige uma pesada gestão de logísticas e muita criatividade. Não era a toa que Euzébio pouco ligava aqueles que na mídia geral o chamavam de canastrão, o que lhe irritava mesmo era quando alguém o associava a vadiagem.

Euzébio as vezes era surpreendido por algum fiel verdadeiro, que também subia ao palco e pedia alguma espécie de graça. Pensava ele: Além dos tolos ainda existem os picaretas que aqui sobem com um problema estupidamente inventado e saem pulando curados. Ele tentava imaginar o que queriam ou ganhavam essas bestas que por vontade própria colaboravam com toda aquela farsa através de suas próprias mentiras. Era o que ele chamava de Tolos dos Tolos, pois aqueles indiretamente trabalhavam de graça para ele e sua igreja.

Pois logo no início de sua palestra o Pastor foi surpreendido pelo que parecia ser um desses. O homem que sentava no meio do auditório levantou os braços e disse precisar de algo. Era um homem ligeiramente gordo, calvo e com grossos óculos que escondiam sob pesadas lentes um par de olhos muito azuis. O carismático pregador pediu então para que o homem levantasse da cadeira e viesse até o tablado.

- O que o senhor precisa? Perguntou Euzébio.

- Preciso de água, pois estou com sede.

Muitos caíram no riso. Era surpreendente que um vivente provocasse a pausa de uma palestra para pedir um copo de água. Euzébio dissimulando certa irritação pediu para suas ajudantes que dessem um pouco de água ao gordo. Ao receber o copo nas mãos o homem olhou nos olhos do Pastor e disse em voz baixa onde só os dois pudessem ouvir:

- Diga a verdade, caia de joelhos e sua filha estará livre do mal que lhe aflige.

O Pastor sentiu seus joelhos estremecer, uma corrente de seu sangue correu-lhe por todas as veias como lavas de um vulcão prestes a explodir. Precisou até mesmo fincar a mão no apoio de livros que estava ao seu lado diante de um leve desequilíbrio. Disfarçadamente representou estar com calor e afrouxou o seu colarinho. Olhou ao redor e viu que o auditório estava no mais ensurdecedor silêncio. Na sua cabeça latejava o que há muito tempo ele nem lembrava um dia sentir, remorso. Ficou ali por segundos e todo aquele momento pareceu horas. O homem sem ao menos provar da água colocou o copo sobre o apoio de livros. Euzébio com certo esforço perguntou em voz baixa:

- Quem é você?

- Sou aquele que cura os Tolos dos Tolos.

Após dizer isso, deu as costas e saiu caminhando até a porta, deixando o salão sem olhar para trás.

Euzébio ficou estático olhando para a porta. Olhou nos olhos dos fiéis ignorantes e como se alguém batesse com um bastão nas suas pernas caiu pesadamente de joelhos no palco. Sob um enchente de lágrimas gritou com todas as forças:

- Perdoem-me! Sou um mentiroso. Essa igreja é um instrumento falso. Perdoem-me por desprezar sua fé.

Aos poucos o burburinho foi tomando conta da multidão. Gritos, insultos e revolta começaram a ecoar. O tumulto tomava forma através de cadeiras quebradas e palavras exaltadas. Nisso o celular do pastor vibra e ele atende rápido. Era sua mulher que aos gritos dizia sobre um milagre. A filha estava totalmente curada da Leucemia. Uma lágrima do palestrante cai dentro do copo sobre o apoio. Ele observa o copo. O que havia ali não era mais água. Nesse instante alguém mais violento ergue uma cadeira e pelas costas bate covardemente no pastor. Um golpe certeiro, um golpe forte demais, Euzébio cambaleia tenta apoio, mas apenas cai derrubando o suporte e o copo. Seu corpo cai abruptamente do palco ficando inerte no assoalho. Seu sangue surge misturando-se a uma pequena poça de vinho.

quarta-feira, 10 de março de 2010

O Pescador de Ilusões

Todos os dias ao nascer do sol, o pescador atravessava uma colina, adentrava um jardim de girassóis, vencia um aglomerado de grandes rochas e se aconchegava num pequeno canto de frente a um bucólico riacho. Ali olhando a água gelada, com arbustos e pequenas árvores na outra margem, ele lançava sua linha e aguardava pelos peixes. Assim por algumas horas ficava o pequeno homem. Por toda a estação essa foi sua rotina, esse foi o seu cotidiano.

Certa vez ao lançar a isca uma luz brilhante surgiu de baixo da água. O homem curioso e assustado apertou os olhos para melhor ver. A luz então subiu mais forte e se transformou numa linda moça com cabelos negros e pele extremamente clara. O homem pensou estar sonhando e com a voz tremula perguntou:

- Quem é você?

A brilhante aparição com os olhos mais verdes que se poderia imaginar disse com uma voz doce e agradável.

- Sou sua filha e meu nome é Felicidade.

O homem sem entender o que ela queria dizer, caiu de joelhos e sentiu seus olhos cheios de água. Então tentando ainda manter a razão, ele retrucou:

- Eu não tenho filha.

- Sim. Eu sei disso, mas minha mãe mesmo assim me pariu. Eu sou a filha que você ainda não teve. Disse a bela garota.

O homem então fez a obvia pergunta:

- Mãe? Quem é sua mãe?

Nesse instante um barulho assustador, algo como um trovão eclodiu no lugar e a aparição deixou de existir. O homem assustado e caído ficou apenas ouvindo o barulho do riacho. Era impossível estancar as lágrimas de seus olhos, pois ele já sabia muito bem que aquilo só poderia ser loucura. Uma loucura advinda de seu maior desejo.

Naquele dia ele voltou mais cedo pra sua casa. Cabana modesta com assentos de madeira velha e redes de cor crua. Esquentou, no fogão a lenha, um bocado de água com intenção de fazer um chá. Preparou a humilde mesa com duas canecas de barro encerado e um pedaço de bolo de cenoura, encheu o bule com água fumegante. Olhou para o velho relógio em cima de outro móvel e expirou impacientemente. Estava esperando a mulher, queria lhe contar o fenômeno do riacho. Sua dúvida era como contaria o ocorrido, se como fosse um sonho ou uma milagrosa aparição. Ele estava ansioso, sabia que a sua companheira o ajudaria a entender o que havia acontecido.

A esposa, naquele dia estava atrasada, pois geralmente no entardecer ela já havia chego do cansativo trabalho. Ela vendia uns artefatos de tecido numa vila próxima. Já preocupado o homem resolveu ir de encontro à mulher, estivesse ela onde estivesse. Pegou o casaco de lona de carteiro e mesmo assim ao sair sentiu um frio agudo tomando-lhe as costelas. A casa ficava afastada, no centro do bosque, umas duas milhas da primeira estrada de terra batida. Foi quando alcançou essa estrada e vendo o cair da noite que o homem começou a sentir bem mais do que preocupação com sua mulher. O medo estava agora com as mãos em seus ombros. O lugar ermo e gelado lhe cochichava más intuições. O homem estava começando a entrar em pânico. Chegou até o vilarejo e não demorou a observar que a praça onde a esposa costumava usar para suas vendas estava totalmente vazia. Bastante preocupado olhou em volta na procura de alguém. Viu apenas um senhor com pele vermelha e olhos amendoados.

- Senhor, por acaso não esteve aqui hoje uma mulher vendendo algumas bugigangas?

O homem com aparência indígena disse-lhe

- O que procuras é o que procuras?

- Procuro minha esposa

- O que queres com sua mulher?

- Preciso dela pra poder lhe contar algo.

- Então não precisas dela. Precisas de alguém que te escute. Por que não contas para mim?

- Você é um estranho.

- Não, eu não sou estranho. Sou mais íntimo do que possas imaginar. Meu nome é Medo.

O homem desconcertado ficou em silêncio. Quando pensou em retrucar e dizer que antes de tudo queria apenas que a mulher ali estivesse, viu que o índio havia sumido.

A verdade é que aquilo tinha sido mais uma aparição. Duas aparições no mesmo dia. A menina e agora um velho índio. O homem já começava a acreditar que talvez estivesse enlouquecendo. Sentou na calçada e começou a chorar. Naquele instante ele admitia que o pior pudesse ter acontecido a sua querida mulher. Talvez algum assassino ou cruel ladrão.

Desesperado e de forma instintiva o angustiado homem resolveu voltar ao riacho mesmo no meio da escura noite. Titubeou para atravessar as rochas escorregadias na penumbra, mas mesmo tremendo conseguiu chegar às margens do riacho. Com a boca aberta observou que as águas escuras corriam de forma avassaladora numa incrível correnteza. O riacho que de dia parecia um espelho, agora se transformara num violento e assustador rio.

Foi observando aquela torrente que percebeu mais a longe uma mulher acenando com os braços como se estivesse afogando. Correu atrapalhado subindo pela margem chegando até um penhasco de mais de dez metros de altura. Lá de cima reconheceu a própria mulher. Ela gritava socorro. Num ato compulsivo atirou-se lá de cima num mergulho improvável. As águas turvas pareciam um universo de mãos a empurrá-lo para o fundo e para a morte. Seus braços se debatiam como tentáculos inúteis, a força daquela natureza foi engolindo pouco a pouco aquele frágil corpo. Aos poucos foi se entregando, não conseguia mais nem ver a mulher. Já submerso sob a parca luz do luar conseguiu ver muitos peixes, muitos mais do que imaginava que houvesse naquele outrora riacho calmo das pescarias. Poderia até mesmo pega-los fácil esticando os braços. Os peixes estavam ali como uvas que se apanha numa parreira.

...

A mulher chorava abraçada a outra que talvez fosse uma vizinha. Os policiais faziam as mesmas perguntas rotineiras em casos como aquele, onde o mais provável teria sido o suicídio. Ela respondia entre lágrimas e soluços.

- Mas a senhora não observou nenhum comportamento estranho de seu marido?

A mulher nada disse. Apenas ficou olhando pela janela, lembrando daquela manhã quando ele saia para pescar.

...

- Já vai pra vida mansa de novo?

O Homem nada respondeu.

- Você ainda tem juventude, deveria trabalhar. Essas suas pescarias não servem pra nada.

A mulher parecia irritada, e continuou dizendo:

- Eu tenho que ir à praça e você fica nessa inútil pescaria. Você deveria buscar a felicidade, deveria vencer os seus medos. Ficar sentado esperando pelos peixes é fugir da realidade da vida. Você ainda é novo. Poderíamos ter melhores condições.

Sem olhar para trás o homem apenas deu uma parada e depois continuou rumo à porta e a pescaria. Ele sabia que ela tinha certa dose de razão. Ele sabia que dentro do seu coração havia infelicidade. Ele sabia que não passava de um pescador de ilusões.