quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

O Passarinho


Subi correndo a Rua dos Pombos, adentrei o matagal, atravessei o pomar e lá estava ele, bem na mira. O pequeno Bico de lacre com máscara azul, sim aquele era diferente de todos os outros vermelhos, era uma criatura única, fazia semanas que eu e meu irmão víamos aquele mascaradinho azul nas redondezas. Devagar fui pegando meu estilingue no grande bolso do velho paletó de meu pai. O passarinho estava ali a cerca de três metros, eu sabia que um movimento brusco e tudo se perderia. No outro bolso do paletó, busquei uma pelota de barro seco e com os dedos meticulosamente escolhi a mais perfeita, o tiro deveria ser perfeito. Aquele passarinho andava me desafiando nos últimos dias. Vamos lá “mascaradinho” azul, vamos ver se dessa vez você vai fugir de Ivan “o terrível”.

O estilingue já estava no ponto certo, meus olhos focaram “a vítima”, um pequeno momento de concentração e “zupt”.

Não consegui perceber se acertei ou não, corri para baixo daquela arvore, procurei ansioso. Lá estava ele, devo ter acertado sua asa em cheio, o pequeno se arrastava e batia desesperadamente sua asa saudável. Peguei-o com até um pouco de emoção. Seus pequeninos olhos penetraram profundamente nos meus, senti um calafrio, foi nesse instante que aconteceu aquilo que nunca mais esqueci, uma voz fininha parece ter saído daquela pequena criatura.

- Deixe-me no chão, eu sei que ainda posso voar! Disse a voz.

Como que hipnotizado, devolvi o pequeno para o chão perto da raiz do abacateiro. Não deu dez segundos e como por milagre, o arisco saiu voando como um raio.

- Seu babaca, eu vi tudo daqui! A voz agora vinha das minhas costas, era meu irmão que estava chegando. Ele continuou esbravejando:

- Você liberou o “azulzinho”! Estava na sua mão! Porque fez isso?

Na hora fiquei com raiva de mim mesmo, nem tive coragem de contar ao meu irmão que ouvi o passarinho falar. Ele ficaria rindo da minha cara.

Ficamos nós dois ali, olhando para o alto. Dois garotos magrelos. Eu com um paletó que me fazia parecer um pequeno padre, nossos pés descalços, a brisa do mar próximo fazia as folhas das árvores cantarem. Lá no azul do céu, o “azulzinho” que assim havíamos apelidado, fazia piruetas e parecia debochar de nossa incapacidade de voar.

....

- Vovô, vovô, veja! Pegamos, pegamos!

Minha neta corria afobada, invadindo o quarto onde eu olhava o computador. Nas mãos dela o alçapão e neste, todo enrolado na pequena rede, um pequenino passarinho. Com cuidado desvencilhei o bichinho para que não se machucasse. Para minha surpresa, ali em minhas mãos percebi que se tratava de um Bico de lacre e com os olhos envoltos numa risca azul. O tempo adentrou a janela daquele quarto como se fosse um furacão, uma correnteza de lava fumegante ou um turbilhão de emoção. Na minha mente surgiu de forma nítida todas as peripécias na praia da saudade, todas as correrias por dentre o matagal, as pescarias na ilhota e as tardes quentes no velho trapiche. Meus irmãos, meus pais, tudo tão intenso graças aquela pequena mancha azul na cabeça do apavorado pássaro.

- Vamos botar ele numa gaiola vovô? Perguntou minha esperta netinha.

- Não, minha querida. Vamos soltá-lo! Respondi.

- Mas “vô”! Foi muito difícil pegar esse danado. Respondeu a pequena.

- Mas vamos deixar que ele possa continuar voando querida.

Então abri lentamente as mãos perto da janela. O Bico de lacre ao contrario do que se imaginava, voou somente até o peitoril, e ali ficou olhando para mim e para minha neta. De novo como a cerca de sessenta anos atrás, ouvi aquela pequena voz:

- Obrigado, vim lhe agradecer pelo meu antepassado! Disse a pequena voz.

- Vovô! Ele falou, ele falou! Gritou minha menina.

- Você ouviu? A emoção tomou meu coração. Ali eu entendi tudo. Aquele era um descendente do velho “azulzinho”. Minha netinha também o ouviu agradecer. Parecia um sonho, mas era pura realidade. Em seguida o pequeno pássaro falante ainda disse:

- Vejo que também podes voar.

Notei que os pequeninos olhos do passarinho apontavam para o computador. Então entendi o que ele quis dizer. Na tela estava o Google Earth, minha brincadeira favorita, navegar sobre as imagens de satélite de bairros, cidades e países. Sim ele estava certo, agora eu podia “voar”, ver tudo lá de cima, visitar lugares novos e voltar a ver lugares antigos e suas mudanças. Eu podia brincar no céu, como fazia o velho “azulzinho”.

Na janela a pequena ave saiu voando para longe. Ainda tive tempo de vê-la rodopiar no ar, eu e minha neta acenamos para ele.

- Adeus pequeno amigo! Falamos.

Vendo a tristeza no rosto da menina, Peguei-a no colo e mostrei no computador onde eu morava quando menino, onde eu brincava, pescava, soltava pipa e contei pra ela a história de um pássaro azul que conseguiu fugir das mãos do maior caçador de pássaros: Ivan o terrível.



Dedicado ao meu sogro e amigo: Ivan Santos da Silva

Feliz Aniversário!

quinta-feira, 26 de novembro de 2009

Ilustrações

Estou compilando alguns contos para a publicação de um livro no site clubedeautores.com.br

Nessa empreitada consegui que minha sobrinha, uma talentosa desenhista, ficasse com a função de elaborar as ilustrações.

Essa semana ela apresentou seus primeiros trabalhos.

Ficaram maravilhosos. São verdadeiras obras de arte.

Obrigado Fernanda. É muito prazeroso ver que meus contos possam inspirar desenhos tão bacanas.

Fernanda Pacheco - Essa tem talento e futuro.


segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Cortinas caramelo


Ela abraçou o marido, beijou-lhe a bochecha.
- Ficou lindo meu bem! Deu outra cara a nossa sala. Disse a mulher com os olhos brilhando.
O marido satisfeito em vê-la assim, examinou as cortinas de cima abaixo e concordou:
- É! De fato ficaram muito bonitas.
- Agora precisamos comprar um sofá. Emendou a animada esposa.
O marido ficou só olhando a cortina branca com pequenos rabiscos caramelo. Não ouviu.
- Meu bem! Precisamos agora de um sofá novo, não acha? Insistiu a mulher.
- Ah? Ah sim, claro. Vamos ver. Vamos ver. Respondeu de forma evasiva.

Outro dia:

Visitaram diversas lojas de móveis. Andaram bastante. Numa determinada loja o homem encontrou um grande sofá, confortabilíssimo, num preço muito bom. Era de qualidade.

- Mas querido, a cor dele não fecha com nossas cortinas.
- Como assim não fecha? Ele é preto. Preto não combina com tudo?
- Sim eu sei combina, mas eu pensava em algo mais alegre. Veja esse ocre aqui.
- Mas esse é muito menor! Nossa senhora veja esse preço!!!
- Você não vai querer uma sala de mau gosto só por causa de uns trocados né?

O marido dá de ombros e vai para outro setor da loja. A mulher entende como sinal verde e chama o vendedor para comprar o sofá ocre.

- Querida, querida. Vi uma cadeira daquelas que eu procurava há séculos. Toda articulada. Uma beleza pra ver TV.

A mulher sorri e acompanha o marido até a dita poltrona.

- Meu bem ela é legal. Mas eu acho que vai destoar das cortinas.
- O que? Hã? Cortinas? Como assim? A poltrona vai ficar longe das cortinas.
- Querido! Há há há. Esses homens. Apesar de ser em L, nossa sala representa um ambiente só. Ficaria terrível lá perto da TV uma poltrona dessa tonalidade.
O marido ficou olhando para a poltrona. Ainda passou a mão em seu encosto aveludado.


Outro dia:

- Querida, onde está minha mesinha para o notebook? Eu sempre deixava aqui nesse canto.
- Ah! Esqueci de te avisar. Eu deixei lá na área de serviço. Estava horrível. As cortinas perdiam muito do brilho com aquela mesinha velha encostada ai nesse canto.
- Mas eu preciso trabalhar num projeto agora.
- Ta lá na área de serviço. Por favor, trabalhe por lá. Teremos visitas e quero deixar a sala impecável.

Outro dia:

- Querido, vamos à praia? Pergunta a Mulher.
- Mas nem está tão calor. Disse o homem.
- Precisamos nos bronzear. Veja, você está muito branco.
- Desculpe minha flor, mas eu não to com vontade não. Vá você.

Outro dia:

A esposa chama o marido até a cozinha.
- Já vou, já vou.
Ao entrar ele estranha um grande plástico cobrindo o chão.
O que é isso? Pensa.
Ao levantar a cabeça toma um susto.
A sua frente a mulher segura uma arma apontada para seu peito.
Não dá nem tempo de dizer nada.
Um disparo seco ecoa no ar.
O homem cai de joelhos e em seguida de lado sobre o chão frio coberto com o plástico.
Ele ainda vê as pernas da mulher se aproximando.
Ainda com a pistola fumegante nas mãos ela se agacha para que possa olhar nos olhos do marido.
- Querido. Você está muito branco. As cortinas caramelo não combinam com você.
O sangue já forma um pequeno lago sobre o plástico.

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

A Princesa e o Farol


Lá estava ele novamente, olhando o horizonte e seguindo o imaginário canhão de luz do farol. Seus pensamentos perdidos no oceano tentavam encontrar o ponto de origem, o gênese de sua angustia. Suas perguntas não encontravam respostas definitivas. Lembrava do verso de um velho soneto onde o poeta chorava: Em que estação sucumbiu minha vida, qual maré curou minha doce ferida. Aquele velho farol era o porto dos lamentos do deprimido Hector. Seus olhos tristes mergulhavam no fundo daquele gelado campo de ondas, mas sua mente voava de encontro às rusgas, as diferenças e as decepções vividas com sua mulher, Janice. Tinham brigado feio naquela tarde. Apenas três anos de casado foram suficientes pra dizimar, extinguir, desmistificar um amor que agora provava ter sido só uma desastrada paixão.

O local não poderia ser mais emblemático. Velho farol abandonado, lugar bonito e tão misteriosamente esquecido pelo povo daquela cidade. Ali era o jardim das delicias do outrora apaixonado casal. Foi ali o primeiro beijo, o amor, os planos e as promessas. Quanto tempo fazia desde a última visita juntos ao farol? Depois de casados, só uma única vez.

Lembrou do maior dos planos. Era, para eles, a luz mais forte e brilhante no ponto mais longínquo do horizonte: Um filho. Um filho que nunca veio. Ele nunca admitiria, ele nunca ousaria esboçar que a criança que nunca existiu fosse o motivo de tanta decadência na vida dos dois. Ele batia nos peitos e como um soldado fiel, imponente e corajoso protegia o problema da amada como se fosse um problema do mundo. Hector nunca mencionou qualquer grunhido em desagrado a este drama. Mas o pensamento, ah o pensamento! Esta entidade cruel que domina qualquer ser em qualquer tempo, em qualquer situação. O pensamento com seu bafo quente cochichou nos seus ouvidos:

- O choro do seu filho é o que não te deixa dormir.

- Sai de minha cabeça, pensamento tosco e mentiroso! Gritou pra si mesmo o perturbado homem.

Houve silêncio.

O pensamento nem precisou mais repetir. Hector caiu de joelhos e aos prantos revelou-se como um desgraçado que havia sido traído e amaldiçoado por Deus. Foi ali de joelhos que percebeu a luminosidade vinda da janela do farol. Levantou-se vagarosamente e boquiaberto viu a luz iluminar, agora de verdade, o mar instável e assustador lá fora. Pensou estar louco. Como poderia aquele velho canhão de luz ainda funcionar?

Nesse intervalo de estupefação percebeu um pequeno movimento lá longe, no fundo. Cerrou os olhos e vislumbrou dois braços desesperados. Havia alguém se afogando. Precisava fazer algo.

Sem pensar muito, desceu correndo por entre as rochas, despiu-se de sua blusa celeste tricotada pela mulher e desprezando o frio que chicoteava seu dorso atirou-se sem titubear na água gélida e salgada. Nadava como um cachalote: Pesado, mas habilidoso, aproximando-se cada vez mais dos gritos de socorro. Percebeu que se tratava de uma mulher, ela estava enrolada num pedaço de rede de pesca. Com dificuldade e engolindo muita água conseguiu segura-la nos braços e contra o vento, as ondas e o desespero da vítima, foi levando-a ao raso. O corpo da mulher, apesar do contexto era quente e macio. Naquela fração de emoção, engolindo água e afogando-se em adrenalina lembrou-se das noites frias com Janice, os dois sob o chuveiro fumegante desafiando a estação, cobertos apenas com a manta do desejo. Tal lembrança em tal situação tornaria impossível que o momento não lhe trouxesse excitação. Ali no meio do turbilhão percebeu quão bela era a moça que agora tinha nos braços. Cabelos ruivos, face clara e olhos da cor das algas. Pequenas sardas entre o pescoço e ombros pareciam hipnotizar com a ordem: Siga, siga, devore todo o resto. Sentiu os seios tocar-lhe o peito. Percebeu que ela estava sem blusa, usando apenas um colarzinho de ossos. Percebeu também que ela havia se acalmado, pois já tinha se desvencilhado da rede.

A moça que irradiava uma juventude cruelmente invejável estava ali abraçada com Hector. Os dois com os corpos sob a água. O frio não tinha permissão para estar por ali. Sem dizer nada, fizeram amor nas águas, iluminados pela cintilante e mágica luz do farol.


****

Ao acordar Hector estava todo dolorido. Do seu lado a garrafa de vinho. Devia ser umas sete da manhã. Sua cabeça parecia que iria explodir. Lembrou-se dos pensamentos no farol, o filho que não existia, a luz, a mulher. Não havia duvidas que a bebida o fez perecer e tudo não passara de um sonho. Um sonho tão real quanto a tristeza daquela desilusão. Mas nem tudo estava perdido. Precisava ir para casa, precisava confessar a mulher de sua vida que um filho lhe fazia muita falta. Precisava abrir seu coração pra tentar salvar o casamento.

Janice nem quis ouvir. Em toda a vida de casados, ele nunca havia sequer faltado a um almoço. E agora depois de uma noite fora, como poderia se explicar? Sem blusa, com hálito de bebida. Não existiam dúvidas para a esposa. A vida dos dois ali tinha acabado. Deixou o sozinho na varanda e saiu com as malas. Antes ainda disse:

- Que imbecil usaria um colar de ossos feminino depois de uma noite de luxúria?

Hector emudeceu. Estático levou as mãos ao colar, que só então percebera no próprio pescoço. Atônito, perplexo, confuso, desnorteado, olhou para o infinito.


****

A vida na pacata cidade litorânea tornou-se ainda mais rotineira do que outrora havia sido. Desde que a esposa desapareceu, Hector caiu ainda mais abruptamente nos braços da bebida. Andava pelas ruas como um naufrago que perambulava por uma ilha deserta. Barba por fazer, roupas abarrotadas e um coquetel de cheiros enraizado na sua pele curtida e oleosa. Os outros o viam com pena, pois sabiam de sua desgraça. Voltou inúmeras vezes ao farol abandonado. Com uma garrafa em punho, declamava seu amor ao mar. Chamava por uma mulher que nem sabia o nome. Dormia exausto na areia da praia, buscava incessantemente pelo mesmo sonho. Muitas vezes saia, em canoas, na companhia de pescadores, jogando a rede e olhando os peixes agonizantes no chão do barco. Certa vez, um desses peixes que se debatia no barco, fixou os olhos esbugalhados naquele homem e então conseguiu pular para o mar e para a salvação. Naquele instante o medo transpassou aquele apaixonado coração. E se aquela loucura houvesse de fato acontecido e ao adormecer tivesse deixado a sua princesa escorrer entre seus braços e sumir nas profundezas do oceano? Seu pânico era ter fracassado em salvar a mulher dos seus sonhos.

Apertava o misterioso colar entre os dedos e chorava lembrando-se dos olhos cor de algas. Já haviam passado meses desde que uma noite transformou-se num delírio, num sonho, num mistério e dia após dia foi se transformando numa paixão avassaladora.


****


REINO DE GROTÃO – A princesa Liduína


Desde o casamento com o príncipe Boca Grande, a princesa Liduína vinha sofrendo de uma aflição terrível. Ela sabia que um herdeiro ao trono de Grotão era mais do que obrigação para a nova Rainha daquele escuro mundo. A linda sereia com seus cabelos cor de fogo e seus brilhantes olhos de algas, fora a escolhida entre todas as fêmeas daquele reino. De fato era incrível que tão bela criatura pudesse viver entre outras tão esquisitas. O príncipe Tubarão Boca Grande contava os dias para declamar a todos os seres de Grotão a continuação da família Real.

Liduína já tinha concluído que o Rei era o último de sua geração. A sereia sabia que a fertilidade não morava nas entranhas de Boca Grande. Mas como dizer isso ao orgulhoso tubarão? Como escancarar aos moradores de Grotão que a majestade, filho do mitológico Dourado III carregava consigo esse pecado imperdoável para aqueles que têm o sangue azul? Ela nunca contaria. Liduína teria esse príncipe de qualquer jeito. Era certo que ela deveria tomar todo cuidado do mundo nessa aventura perigosa. Boca Grande era respeitado em todos os corais, tocas e fossos de Grotão. Até mesmo no submundo de maior escuridão tinham um grande apreço pelo jovem Rei.

Um plano foi executado pela sereia. No entanto aconteceu o que jamais poderia acontecer. O olhar triste de certo faroleiro apunhalou de paixão o meio corpo da ousada princesa.

Sem saber bem porque, a formosa amante deixou com o homem o seu colar de ossos. Essa foi sua maior falha. Um dos súditos da realeza que esteve por alguns minutos numa canoa entre humanos e se salvou milagrosamente reconheceu o colar envolvendo o pescoço de um deles. Não teve dúvidas. Contou ao Rei.

Boca Grande irritado foi ter com a jovem rainha, esta em sua nervosa ingenuidade nem pensou em inventar qualquer história, contou sua loucura e pior ainda confessou sua insólita paixão. O tubarão caiu em desgraça, amaldiçoou a sereia e a expulsou para os confins das profundezas onde nunca mais pudesse ver a cara de mais nenhum peixe. Boca Grande não entendeu e não percebeu o estado da infeliz. Liduína meses depois teve seu príncipe numa toca escura com a ajuda de bondosos peixes abissais. O rei nunca ficou sabendo desse nascimento. Liduína o chamou de Noturno Coração Iluminado, em homenagem a mais linda noite de sua vida. Uma noite de amor sob a luz do farol.

sexta-feira, 9 de outubro de 2009

Coração Iluminado e o Reino de Grotão


A primeira vez que o franzino João viu o mar, foi quando tinha nove anos de idade, o insólito nisso é que uma doença rara o fez perder totalmente a visão aos sete, ou seja, dois anos antes. João era muito pobre, morava no interior, e desde pequeno era um menino estudioso que carregava no coração uma curiosidade impávida. Tinha como sonho ser um grande almirante, adorava os livros que contavam as peripécias dos grandes navegadores de séculos passados.
Mesmo morando num longínquo e miserável casebre o pequeno e esforçado João planejava um futuro promitente. Seu primeiro dia de aula, aos seis anos foi uma de suas maiores emoções. Mapas colados em murais do modesto colégio, carteiras rabiscadas por outros alunos menos empolgados, professores com seus ares de sabedoria que despertavam no garoto uma inveja saudável e ingênua. Tudo era encantador frente aos olhos daquela criança.

Foi às vésperas de um inverno que uma moléstia começaria a mudar a doce vida do garoto. A doença que o acometeu era uma raríssima enfermidade de nome estranho. Foram dias, semanas e meses de cama tendo a criança aos poucos a perda de sua visão. Trágica sina fez com que a mãe de João, uma humilde viúva, saísse do interior e fosse para o distante litoral, pois lá, uma espécie de orfanato para deficientes poderia proporcionar uma vida mais digna ao pobre menino. Dona Maria, uma costureira de mãos firmes e pulmões cansados, sabia que sua própria vida não iria muito longe e fez com que o vigário, responsável daquela casa de caridade, prometesse os cuidados necessários com o menino, mesmo depois do inevitável.

João quando chegou ao velho edifício onde funcionava a casa para enfermos, sentiu o cheiro do mar. O cenário era um tétrico casarão de diversos quartos que servia como hospital, asilo e albergue. Nos fundos um penhasco revelava um mar agitado e cinzento. Uma paisagem sombria como um eterno inverno. Ao chegar João já tinha as vistas totalmente prejudicadas.

O menino apesar de curado nunca mais pode enxergar. Na eterna noite de seus olhos, seus sonhos, seus planos e seus desejos foram sucumbindo como marinheiros a deriva, afogando-se distantes do navio. Sua mãe, para animá-lo, lia histórias quando podia e o rapaz as ouvia com um evidente olhar vazio e sem graça.
Há no mundo maior injustiça que definir ou perceber um olhar em olhos que nada vêem?

O tempo tratou de escurecer ainda mais aquele maldito destino. Chegou o dia que nem sua mãe poderia mais mirar o horizonte da vida. Um colar de ossos foi a única herança material deixada pela velha mulher. O menino, arrasado e magoado com a vida, com a ajuda do vigário atirou aquele objeto no penhasco. Que as ondas agitadas e furiosas engolissem aquele colarzinho e que toda a sua dor morresse no fundo do mar.

Deus por muitas vezes, alivia certos infortúnios. Tempos depois um homem de nome estrangeiro apareceu por aqueles lados e resolveu passar um tempo naquele melancólico lugar. Certa vez ao encontrar o menino chorando amuado num canto, o homem, viajado e experiente, percebeu do que se tratava. Os pequenos olhos encharcados revelavam-se desvanecidos, fixos, inertes. Pareciam olhos de porcelana, o homem logo percebeu que eram faróis obsoletos. De maneira suave e ao mesmo tempo imponente, como lufada quente que conduz um veleiro a mercê de gigantes ondas de um oceano feroz, o estrangeiro foi aos poucos tomando confiança e alugando fragmentos de atenção do sofrido rapaz. Falou da própria vida, falou de suas viagens e sem dar a menor chance conquistou o espírito tristonho do novo amigo ao revelar seu passado de profundo conhecimento do mar. Era covardia aproximar-se de tão sonhadora criança e contar fantásticas historias que diziam respeito às marés, tempestades e correntes oceanicas. Foi nessa época que o menino pode dizer que finalmente havia visto o mar. As descrições do locutor eram magnificamente perfeitas de tal forma que com um pequeníssimo esforço poder-se-ia ouvir o som das ondas e até sentir a maresia. As palavras daquele senhor eram mais reveladoras do que fotos, eram mais tangíveis que as próprias rochas.

O mar era decifrado como um tremulante tecido ora verde ora anil, com fumegantes brumas, tão envolvente quanto o lençol que sua saudosa mãe estendia pelos varais e camas de casa nos dourados dias de sonhos vivos. A imensidão dos oceanos era associada ao infinito das saudades de esplendidas manhãs onde, brincando, o menino olhava as nuvens no céu carregado e imaginava fragatas cortando águas profundas e misteriosas.
Foi assim, num universo de lembranças e palavras poéticas, que o menino conseguiu vislumbrar o mar, conhecer navios, balançar em ondas gigantes, enfrentar ressacas assustadoras e até combater mitológicas criaturas marinhas. O homem havia conseguido fazê-lo sorrir e viver um pouco de novo.

Foram cerca de quatro anos de historias, conversas e amizade. Mas além desses contos de inestimável valor proporcionados pelo bom homem, outro valiosíssimo tesouro foi dado ao menino: A leitura para cegos. Foi graças a essa grandiosa herança deixada pelo inesquecível amigo que o menino pode crescer, contar historia e sentir-se mais humano.
O homem se foi. O menino já não é mais um menino. Ele adora ir até a praia e sentir a água nas pernas, ouvir o som do mar. Lembrar da mãe, lembrar do amigo e principalmente lembrar as palavras e com elas ver o mar, ver o céu, ver o horizonte e prazerosamente deixar pra trás os tempos de sofrimento, de tristeza e de trevas.

...

REINO DE GROTÃO

Certa vez no Reino Grotão um pequeno peixe chamado Noturno recebeu ordens para que imediatamente fosse ter com o Rei Boca Grande. Sua revolta com o mundo abissal já havia corrido todos os corais.

- Oh! Pequeno Noturno! Por que vives tão revoltado. Ouvi falar de pragas suas contra nosso mundo! Questionou o sábio rei.

- Vivemos na escuridão querido Rei. Nossos corações e olhos iluminados apenas nos fazem ver a um palmo de nossas antenas. Respondeu o pequeno Noturno.

- Somos abissais tola criatura. Somos os mais abençoados, pois temos corações iluminados. Você por acaso sabe o que é viver no claro e ser escuro dentro do seu ser? Isso sim seria a grande desgraça.

O Rei ainda continuou seu discurso:

- Não posso permitir que esse tipo de insatisfação tome corpo no nosso grande Reino de Grotão. Infelizmente fui obrigado a tomar uma atitude. Após conversar com o Mestre Cabeça de Vidro, resolvi que para paz de todos do nosso mundo o insatisfeito deverá ser expulso.

Um burburinho se instalou na pequena platéia de peixes esquisitos. O pequeno Noturno com a cabeça baixa foi subindo deixando para trás a escuridão. Acima um clarão assustador vinha tomando corpo. Um peixe abissal jamais poderia praguejar contra as trevas. Noturno sabia que o mundo lá de cima poderia matá-lo ou cegá-lo de vez, mas como um suicida resignado e sem olhar pra trás o peixinho seguiu firme rumo ao desconhecido.

Depois de muito nadar aconteceu algo inesperado. Um lindo colar de ossos veio vagarosamente surgindo. Ao tocar com sua anteninha no objeto, um tremor ocorreu e num inacreditável segundo o peixe transformou-se num homem. O homem na qual Noturno havia se transformado não era um indivíduo qualquer. Ele nascera com a sabedoria de todos os homens que um dia viveram sobre aquelas águas.

Noturno chegou à superfície. Escalou as pedras e avistou um interessante e antigo prédio destacado num imponente cenário de céu cor de chumbo.

O sábio , sentiu-se atraido pelo prédio e naquela direção rumou. Um homem sereno e maduro. Um homem de passado escuro e coração iluminado.

sexta-feira, 2 de outubro de 2009

Ilha de melancolia


Olhando o bolor no teto úmido do banheiro o sujeito nem ameaça fazer cara de espanto, reprovação ou transtorno. Ele é a indiferença personificada, a indiferença tomando banho. A mancha está ali, e isso é o suficiente. A água fumegante do chuveiro nada faz além de escorrer para o ralo. Assim como o infinito da vida e do universo o bolor parece ter estado ali por toda a eternidade, ele vem do invisível, surge como magia, dá a impressão que nunca irá embora, e o que parece claro e verdadeiro é que nunca mais o sol irá nascer de novo.

O banho é só mais um entediante procedimento de toda a porcaria vivida. O sujeito agora sentado na beira da cama olha a poeira instalada nos cantos. Sua boca aborta qualquer gemido, seu corpo ainda úmido está à mercê de qualquer tipo de ataque, mas com certeza nem o mais estúpido dos pernilongos teria qualquer prazer naquela ilha de tédio e melancolia. Ficaria ali por muito tempo. Horas, dias, anos? Que diferença faz? O sujeito sabe que aquilo é sua vida. O sujeito sabe que seu coração não passa de um medíocre músculo numa desinteressante contagem regressiva.

O buraco hoje parece mais escuro que das outras vezes. Mas ora bolas, como chamar de buraco um sentimento tão a flor da pele, um sentimento tão expectorado por aquele pobre diabo? Que buraco é esse, de onde se quisesse o sujeito veria o horizonte com seus barquinhos irritantes? Afundem barquinhos, afundem! O infeliz ainda raspa do fundo de sua alma um aborrecimento por causa da felicidade inaceitável e egoísta dos outros. Os motivos dele? Que importa os motivos dele? A tristeza dele é onipotente, ela não suporta qualquer gracinha, ela nem mesmo permite que se tente explicar ou entende-la. Ela está ali e pronto. O máximo que acontece é que às vezes o vivente não a enxerga por detrás de uma montanha de bobagens.

Nada naqueles tempos era diferente de outros tempos e nada pareceria fácil. Nem mesmo um confortável entorpecimento estaria em discussão. Era preciso apenas deixar o fogo queimar, ouvir cada crepitar no peito, remoer na mente os soldados inimigos, pensar na ordem dos fatores, fazer morar e despejar em cada milímetro cúbico de seus pulmões sua angustia, as causas e os vilões.

Essa procura insipiente por motivos causa ainda mais nojo àquele patético fantoche de humanidade. Causa-lhe enjôos lembrar outras pessoas, de outros momentos e de outros sentimentos que apenas alugaram sua alma e foram embora deixando toda a bagunça e baderna possível. A raiva ainda consegue dar o seu ar, tal qual um desagradável papagaio nos seus ombros.

Não haveria qualquer canto de pássaro, risinho de criança ou vitral ensolarado que por um segundo que fosse ameaçasse tão soturno e obscuro sofrer. A tristeza estava ali em pé, na soleira da porta do seu coração. Como enxaqueca, gota ou ressaca não existe cura imediata. Cabe-lhe vestir-se, botar sua fantasia, e tentar de forma vil, desprezar tudo aquilo e retomar seu viver. Cabe-lhe imaginar que o caruncho de seu interior possa ser por mais um tempo esquecido. Pelo menos até um novo sol, um novo nascer ou um próximo banho.

quinta-feira, 24 de setembro de 2009

O Novelo

"O conto a seguir só terá sentido para quem ficar 2 horas ou mais num engarrafamento"

Sara foi despertando lentamente ouvindo o burburinho do resto do pessoal. O pai ao lado olhava distraidamente pela janela.

- Pai! O que está havendo ali?

- Nada demais filha. É o vendedor de biscoitos, que faz tempo que não aparecia.

A menina de cinco anos olhou de novo. Observou Dona Marta, o velho Durval. Estavam tentando convencer o vendedor a lhes arrumar uns biscoitinhos a mais. Na verdade o magrelo Odair não deveria ser exatamente chamado de vendedor. Naquele mundo essa função já não existia mais, tudo era na base da troca. O dinheiro há certo tempo já havia parado de circular. Aliás, não só o dinheiro, mas absolutamente tudo estava parado.

Desde o fenômeno Novelo o mundo era outro. Odair era o fornecedor de biscoitos daquela quadra. Chamá-lo de vendedor era só um vício cultural trazido de outras épocas. Alguns dizem que a Kombi dele ainda tem gasolina, mas isso provavelmente não passava de mais uma das antigas lendas urbanas. Com a saída do biscoiteiro todos foram voltando aos seus lugares. Dona Marta lá no fundo, Durval perto da catraca, Zezé preferiu ficar de pé fazendo alongamento perto da porta.

Alguém acabou falando mais alto lá atrás:

- Espero que o Joel dos frangos passe aqui na semana que vem. Logo será mais um dia do Novelo e poderíamos comer um delicioso frango assado.

- Pai, nesse dia do Novelo será que o senhor consegue um brinquedo pra mim? Perguntou a pequena Sara.

O homem no alto de seus 38 anos procurou a mulher. Ela estava demorando desde que foi ao banheiro no ônibus do lado. Finalmente ela surgiu na porta.

- Que demora. Disse ele.

- Tinha fila no banheiro. Respondeu a mulher.

- Temos sorte de ter um ônibus com banheiro perto do nosso. Tem gente que anda quadras pra encontrar um desse tipo, ou então se alivia por ai. Completou a mulher.

- Mãe! Chamou a menina

- Sim, querida.

- No dia do Novelo, posso ganhar um brinquedo?

- Claro filha. O Papai Novelo deve aparecer aqui nos próximos dias.

Papai Novelo era um senhor motorista de uma velha caminhonete Rural. Ele tinha muito jeito com crianças e preparava balas, além de fazer brinquedos de madeira. A mulher então suspirou e disse:

- Quem diria. Semana que vem já é dia do Novelo de novo. Passa tão rápido. Parece que foi ontem, eu peguei esse ônibus pra ir pro colégio.

O homem olhando o semáforo apagado e enferrujado falou:

- É querida. Já se vão oito anos desde o fenômeno. Lembro quando a pequena TV do falecido Lírio ainda funcionava e noticiou em primeira mão. “O novelo está fechado, conforme previam os especialistas, hoje é o dia do colapso final”. Foi a partir disso que todos nós começamos a chamar tudo isso de Era do Novelo.

- Papai, eu adoro quando você conta coisas do mundo lá fora. Falou sorrindo a menina.

- Era maravilhoso minha filha! Já contei que eu morava num prédio onde havia uma grande praça vizinha? E que sempre, eu e meus irmãos brincavamos nessa praça? Saudade dos meus irmãos!

- Sim pai, o senhor dizia que até em árvores subia. E eu nunca nem vi uma árvore. Disse a menina baixando os olhos.

O pai vendo certo ar de tristeza na menina comentou:

- Filha. Nós não podemos desanimar. O Novelo apesar de tudo, me fez conhecer tua mãe e me deu esse presente maravilhoso que é você. Sua chegada aqui no nosso ônibus foi uma emoção que ninguém aqui vai esquecer. Não é Dona Cecília?

A parteira olhou de sua cadeira com um grande sorriso no rosto e um copo fumegante de café que acabara de pegar na perua vizinha.

Sara sentiu-se melhor. Todos ali a adoravam.

A menina fechou os olhos por um momento e pediu baixinho pro Papai Novelo, pra que um dia ela pudesse viver todas as coisas que o papai contava pra ela.

Alguém lá na frente gritou histericamente. Todos foram ver. Era o Negro Ataulfo o motorista.

- Eu vi! Eu vi! A sinaleira piscou rapidamente a luz verde.

Todos ficaram atônitos com aquilo. Na verdade eles sabiam que não se tratava de um sinal fechado ou aberto resolver aquela situação. Simplesmente as estradas pararam. Ninguém no mundo nunca mais encontraria a “ponta do barbante”. Todos sabiam que mesmo que não houvesse aquele caótico engarrafamento, nenhum carro da redondeza teria combustível pra andar. Já passara quase uma década desde o começo daquilo. Uns se aventuraram a pé, outros chegaram pra ficar, tiveram pessoas que Tomaz, o coveiro, levou, tiveram uns que até saiam e depois de meses voltavam. A verdade é que aquelas pessoas aos poucos foram se acostumando, se amoldando e se transformando naquilo que eram agora. Provavelmente muitos ali nem saberiam mais viver de outro jeito.

Mas mesmo que aquele lampejo verde fosse um delírio do cansado motorista, aquilo foi recebido como um sinal. Talvez novos tempos estivessem surgindo. Os passageiros continuaram olhando boquiabertos para o velho semáforo quebrado. Alguns nem lembravam mais de como era a vida antes.

Sara com os olhos arregalados, agradecia em pensamento para Papai Novelo.

sexta-feira, 18 de setembro de 2009

A Máquina do Tempo


O despertador finalmente disparou. Joni já havia acordado pelo menos há 2 horas e apenas aguardava o toque do relógio para poder iniciar o dia mais esperado de sua vida.

Desde que começou a trabalhar há 17 anos como bolsista no Laboratório de Ciências e Estudos Neuro-Físicos da conceituada Universidade de São Genaro, o estudioso estava muito ansioso por aquela ocasião. Ele agora já não era mais bolsista ou estagiário, e sim um respeitado pesquisador formado em Engenharia Mecânica e Física com especialização em Protótipos para experimentos encéfalo- cirúrgicos. Sim Joni era um desses tipos: Cientista Maluco.

Aquela noite de insônia parcial tinha com certeza toda razão de ser. Joni desde pequeno era um menino diferente, sua infância nunca acompanhou o padrão dos amigos da escola ou da vizinhança. Se todos gostavam de brincar com peões e correr com pneus de bicicletas equilibrados por varetas, Joni ficava lendo ou tentando entender o comportamento físico destes brinquedos. Ele, como seus tios diziam , havia nascido para os livros e cadernos. Quando adolescente ao invés de sair para curtir garotas, bebidas e conversas sem pé nem cabeça sob gotículas de orvalho, ele apenas ficava em seu quarto envolvido com pequenas experiências, tentando entender as particularidades da natureza e as possibilidades de intervenções.

O que ninguém sabia era que o prodígio depois de um tempo, no fundo no fundo, estava arrependido de ter feito tudo que tinha feito. Joni há certos anos havia cansado de toda aquela sede de saber. Sua verve científica esmoreceu, e mesmo que de forma tardia, aflorou em sua humanidade uma vontade de apenas viver os dias e as noites . Ele sucumbiu ao lugar comum e pior ainda, estava cheio de remorso por tudo aquilo que deixou pra trás.

Certa vez, aos vinte e seis anos de idade, ao ler o texto de um poeta sul americano, Joni se convenceu do quanto estava perdendo da vida. Toda sua infância e juventude haviam voado como as pipas derrotadas nos festivais de outrora e que ele nunca estava lá pra ver. Sua adolescência fora enclausurada em tardes e noites de estudo e exercícios. O poema dizia sobre aproveitar a vida, arriscar mais, mergulhar fundo num oceano de coisas antes consideradas frivolidades. Joni ficou muito deprimido, pois aquilo magoou seu coração como a ponta fumegante do punhal incandescente de um ferreiro num pedaço de isopor de baixa densidade. Joni desde aqueles dias havia tomado uma decisão, ele repararia seu maior erro. Foi essa obsessão que o fez desenvolver em segredo um dispositivo de viagem temporal. Uma máquina do tempo.

A engenhoca consistia numa imensa cápsula com uma câmara interna ligada por um eixo numa das extremidades. Algo como uma máquina de tomografia onde o corpo do paciente poderia girar livremente. Na cabeça uma espécie de capacete com diversos eletrodos lembravam facilmente os filmes B sobre Dr. Frankenstein e a criatura. A idéia era atingir velocidade altíssima de giro do corpo e do cérebro combinando com impulsos eletromagnéticos no crânio, fazendo assim uma reação psico- física onde baseada em teorias de relatividade do espaço com o tempo provocaria um deslocamento temporal. Tudo foi estudado a fundo pelo obcecado físico.

Joni já havia testado com pequenos camundongos e estes sumiam como mágica depois do experimento. Todos sabem que a coragem é a mãe do progresso. O que seria de um cientista se esse não tivesse coragem? No entanto a coragem tem um limite e após essa linha ela muda de nome, ela passa a atender como Loucura. Joni já havia há tempos se despedido da coragem. O mundo dele agora era outro.

Ao chegar ao laboratório, viu o mesmo pessoal de sempre. Cumprimentou a todos e sem gerar qualquer desconfiança foi caminhando até a sala para experimentos. Nos últimos meses somente ele tinha as chaves daquele espaço e sob o motivo de confidencialidade mantinha tudo que ali era feito no mais profundo segredo. Ninguém sabia de sua estranha e insólita experiência. Algo, no entanto foi diferente naquele dia. Um senhor que Joni nunca tinha visto no laboratório, de cabelo grisalho e jaleco azul claro estava fazendo a limpeza dos corredores e antes do cientista adentrar a sala, falou:

- Vejo que vocês têm algumas cobaias por aqui!

Joni parou um pouco e então se virou para o locutor. O Homem com sobrancelhas grossas como uma taturana e olhar emblemático ainda emendou:

- Você já parou para olhar para esses ratinhos que “brincam” nessa roda?

O velho apontava uma pequena gaiola sobre um balcão onde um camundongo corria sem sair do lugar fazendo girar um cilindro. Joni olhou aquilo e perguntou:

- O que o senhor quer dizer? Desde quando o senhor trabalha aqui na limpeza?

O velho deu um sorrisinho e finalizou:

- Veja o ratinho rodando sem sair do lugar. Ele quer sair da gaiola e não consegue. Só você pode soltá-lo. Só algo maior pode fazê-lo livre.

Joni olhou de novo o pequeno roedor, pensou um pouco e concluiu da perda de tempo daquela conversa. Entrou e fechou a porta à suas costas.

Depois de diversos e minuciosos cálculos, Joni preparou a velocidade, o ritmo e programou o número de giros da câmara interna da inovadora máquina. Segundo seu entendimento ele voltaria algumas horas no tempo. Seria um teste. Antes de acionar, Joni ainda pensou no caso de dar tudo errado. Um tímido sorriso apareceu no seu rosto. Pensou ele: Não tive que deixar nada avisado para ninguém. Pelo menos nisso serviu minha vida sem graça e enfurnada em livros, monografias e teses. A família que eu tinha eu deixei pra trás, a família que eu poderia ter eu rejeitei. Vou enfim arrumar o que fiz de errado. Vou consertar minha vida torta. Acomodou-se na cápsula, ajeitou o capacete e com o polegar esquerdo acionou com um controle a máquina.

...

O despertador finalmente disparou. Joni já havia acordado pelo menos há 2 horas e apenas aguardava o toque do relógio para poder iniciar o dia mais esperado de sua vida...

Ad eternum

sexta-feira, 11 de setembro de 2009

O Forte Apache


Tudo que o garoto pensou no instante em que o pai tirou o brinquedo da mala foi:

- Como ele conseguiu? Um Forte Apache era tudo que eu queria e nem me lembro de ter pedido.

Naquele momento o menino sentiu-se de fato feliz. Era uma caixa muito bacana. Na frente o desenho de soldados da sétima cavalaria em seus cavalos lutando contra um grupo de índios. Um pouco acima os rostos de um general e de um guerreiro Pele Vermelha lado a lado sob a inscrição Forte Apache. Era uma caixa de papelão brilhante, muito colorida devia ter uns quarenta centímetros de largura. Os homenzinhos eram pintados em detalhes e não em uma cor só. Algumas paredes do forte eram realmente de madeira, o que fez surgir comentários do tipo: Olha só! Que bacana! É de madeira! O menino não sabia, mas havia no ar algo bem mais valioso do que aquele pequeno exército, aquela pequena tribo e seus cavalinhos brancos com selas coloridas.

O tempo é engraçado, faz miséria na concepção das coisas. As vésperas daquele aniversário o garoto via cada dia como se fosse uma eternidade. Aos poucos esses dias começavam a diminuir. Semanas vão se entregando fácil, meses vão sendo atropelados e anos já não representam grandes coisa. Aniversários então se tornavam de mágicos a marcantes, de marcantes a diferentes, de diferentes a nem tanto e de nem tanto a monótonos.

Nascemos imaculados e na infância carregamos a mais valiosa carga do mundo: Pureza. Feliz daquele que consegue carregá-la no coração o maior tempo possível. Mas a verdade é que mais cedo ou mais tarde até a inocência adoece. Assim como todo mundo o garoto foi aniversariando e outros presentes vieram. O velho já não lhe dava mais brinquedos, nem bicicleta nem jogos. O negócio passou a ser dinheiro, roupas, e com os anos, só os parabéns por telefone. O tempo é absoluto em tudo. Se ele pode até endurecer a fumegante lava de um vulcão, por que não petrificaria corações?

No tempo do Forte Apache o garoto tinha uma preocupação. Ele imaginava como estaria mais ou menos com a idade do pai. Teria um mundo nas costas? Teria as mãos capazes de fazer pequenas mágicas com cartas de baralho?

O tempo fez o que melhor sabe fazer. Voar!

Todo aquele exército de cavaleiros liderados pelo generalzinho foi sucumbindo a cada batalha. A cada novo embate já não havia tantos homens pra contar histórias. Assim como na vida real ali no mundo das miniaturas o tempo foi cruel. Os apaches foram extintos, os Ianques eram esquecidos e os cavalinhos abandonados num canto qualquer do quintal. A verdade é que numa pequeníssima fagulha temporal, toda aquela geração de corajosos guerreiros sumiu do mapa. Nem mesmo a fortaleza deixou ruínas.

Setembro, como em todo ano surge com tambores, bandeiras e anúncios de flores. O garoto já não pode mais ser chamado de garoto, ele já tem muitas respostas àquelas perguntas de menino. Não existem mais indiozinhos, bicicletas e tabuleiros. Nada disso lhe faz falta, a não ser o toque do telefone.

terça-feira, 1 de setembro de 2009

O segredo das Oliveiras


Os gemidos assustados do mestre tocaram meu coração. Aproximei-me vagarosamente por entre as oliveiras e ele sentiu minha presença. Seus olhos antes azuis pareciam um céu ao entardecer. Olhos rosados em profundas olheiras.

- O que fazes ainda aqui? Perguntou.

- Não vou lhe trair. Disse-lhe.

- Mas o Pai já disse que assim será. Retrucou.

- Porém vejo que o Filho quer desobedecer. Falei, encarando o olhar sofrido de meu querido Rabino.

A face do nazareno estava marcada por dois sulcos deixados pelas lágrimas. O ar pesava como chumbo, já havia escurecido e os demais dormiam.

Continuei:

- Se Ele é o Pai, então você é o Filho. Se não podes ou não queres que um exército de anjos venha lhe salvar, eu o farei.

- Não é assim que estará escrito. Profetizou.

- Não importa, repliquei, eu não deixarei que destruam que flagelem ou matem o amor personificado. Não deixarei que os homens sobrepujem com seus egoísmos e suas fraquezas as coisas que aprendi com você.

- Homem! Deixe de desobedecer. Faça a vontade do Senhor! Determinou.

- Condenarás aquele que vai contra o mundo para salvar a sua palavra? Perguntei.

- As minhas palavras só viajarão no tempo se o destino traçado pelo Pai for cumprido.

- E este pavor que lhe toma a alma? Esta vontade insana de sair correndo para os confins do oriente e lá se perder nos braços de uma juventude interrompida por esta missão? Como explicar isso?

- Sou humano. Meu Pai decidiu assim. Meu medo é escravo desse corpo. Alegou, olhando para o chão e com seus cabelos caídos sobre a face.

- Teu medo é escravo, mas tua vontade é livre. Seu coração humano é quem manda no teu espírito. Tentei.

- Vá de retro satanás. Rosnou o Rabino.

Ele bem sabia que minhas intenções nada eram satânicas. Professou tais palavras sem fé, sem força, mal ameaçou e já estava de novo agachado, chorando muito. Curvei-me e toquei sua cabeça sentindo toda a sua angustia.

- Sua palavra será salva. Prometi.

Dessa vez Ele ergueu os olhos de um jeito interrogativo.

Expliquei então:

- Deixe que me levem. Somos muito parecidos. Muitos desses Rabinos só o observaram de longe. Pedirei para que algum garoto lhes diga nosso esconderijo. Vá mestre, fuja, corra para o Oriente, viva aquilo que merece.

Dessa vez o Homem pareceu balançar. Continuei argumentando.

- Somos muito parecidos. Manterei a cabeça baixa. Deixarei meu cabelo solto sobre o rosto. Com certeza me enviarão para um grupo de figurões, Romanos que nem lhe conhecem. Faremos um pacto. Contaremos a história do seu jeito. Um bom boato ressuscitará e eternizará suas palavras de amor a toda humanidade.

Sentindo o silêncio do Mestre, já fui acordando os demais. Sentamos e combinamos tudo. O destino de meu nome, decidimos que seria o arrependimento e a forca.

Logo o garoto estaria chegando com os soldados.

Despedimos-nos do nosso querido líder. Dei um beijo em sua face. O Rabino sairia na escuridão até encontrar alguma caravana rumo ao leste do deserto.

...

Os soldados chegaram.

Pedro ainda tentou brigar. Cortou a orelha de um soldado. Enfurecidos eles me levaram até o olho do furacão.
...

Na cruz minha dor era lancinante, a mulher olhava com os olhos cheios de lágrimas. Emudecida não entendia.
...

Em alguma caravana rumo ao pacífico, o Mestre tomava uma fumegante tigela de lentilhas olhando o sol poente.

sexta-feira, 28 de agosto de 2009

Violência Gratuita


A sineta toca.

O homem trajado confortavelmente com seu moletom olha pelo olho mágico. Parece um rapaz. Ao abrir, percebe que o visitante não era assim tão jovem como parecia. Devia ter uns 25 anos.

- O que deseja? Pergunta.

- O Senhor é o dono do cinema localizado no bairro de Campinas? O Cine Europa?

- Sim. Algum problema? Aliás, porque o porteiro não avisou?

- Desculpe senhor. O Porteiro tentou, mas o interfone parece estar com algum problema. O senhor pode conversar agora?

O homem pensou por um instante e perguntou:

- Qual seria o assunto?

- Eu gostaria de conversar com o senhor sobre um filme.

Agora mostrando um pouco de impaciência o homem emendou:

- Meu caro. O que houve? Sou apenas o dono do cinema. Você teve algum problema com algum empregado ou coisa parecida?

- Não senhor. Foram todos muito educados comigo. Eu gostaria de falar sobre o filme mesmo. Eu não gostei do filme.

Agora já elevando o tom da voz e deixando claro certo aborrecimento, o homem fechou a porta dizendo:

- Haja paciência. Rapaz vá ver se eu estou na esquina.

E ainda pensou.

- Só o que me faltava. Agora as pessoas virem a mim pra dizer que não gostaram de um filme.

Não deu quatro passos e a sineta tocou novamente.

Irritado voltou e de supetão abriu a porta pronto para gritar com o visitante. Não conseguiu. Logo que abriu a porta, dois canos de um rifle beijaram sua boca.

A revolta agora tinha sumido. Com a arma enfiada entre os dentes o homem era a imagem do pavor. Vagarosamente o invasor foi adentrando o apartamento. Fez um sinal e o homem entendeu que seria para sentar-se na poltrona branca da sala. O rapaz voltou com a arma ainda apontada e trancou a porta. Em seguida sentou-se num sofá próximo e de frente ao homem, dizendo:

- Acho que agora poderemos conversar.

O homem agora parecia menos assustado, mas ainda tinha os olhos vigilantes e preocupados. Com a voz meio embargada tentou dizer algo:

- O que você quer?

- Falar sobre o filme que não gostei.

Silêncio.

O perturbado rapaz então aproximou novamente a sua arma, dessa vez apontando para a testa do homem.

- O senhor está sozinho. Eu sei disso porque vi sua mulher saindo agora a pouco. Ela pode voltar a qualquer momento. Portanto vou tentar ser breve, o contrário daquele filme arrastado.

- Eu não estou entendendo! Disse o homem, sendo logo interrompido aos gritos pelo invasor:

- Quem não entendeu nada fui eu seu filho da puta!

O rapaz então encostou o cano do rifle na testa da confusa e apavorada vítima.

- Não vai perguntar de qual filme estou falando?

Nervoso o homem nem conseguiu proferir qualquer palavra.

- Você deve estar incomodado com esse cano na testa. certo? Aliás, você deve estar pensando por que esse cano está quente? Se você perguntar ao porteiro, com certeza ele não vai lhe responder nada. Completou o doente com um sorrisinho emblemático no rosto.

O insano rapaz depois de desesperadores e nauseantes segundos roçando a arma acima dos olhos do homem, dá uma pequena trégua, afasta a arma e diz:

- Violência Gratuita.

Percebendo o olhar perdido do agora desfigurado anfitrião, ele completa:

- Esse foi o filme. Violência Gratuita. Você sabia que eu poderia processá-lo? Eu paguei pela aquela merda de filme, e ali escrito bem grande no cartaz estava a palavra Gratuita.

Naquela situação tão surreal, o homem ergueu os vermelhos olhos e conseguiu rosnar algo:

- É esse o problema? Você quer dinheiro?

O jovem aos berros emendou:

- Claro que não seu idiota. Eu sei muito bem que o nome do filme é apenas o nome do filme. Eu sei que o termo Violência Gratuita não necessariamente tenha a ver com pagamento ou não. Eu não sou um débil mental. Estúpido é você que pensa que pode exibir um lixo daquele e sair imune. Eu apenas fiz uma piadinha. Igual ao filho da puta do filme.

O homem ainda conseguiu ter voz pra dizer:

- Por favor, não faça nada que se arrependa. Você está alterado, é apenas uma ficção. Não deixe que uma bobagem dessas estrague sua vida.

O diabólico solta uma gargalhada ensandecida e fala:

- Você é tão idiota.

Em seguida puxa o gatilho e faz a cabeça do homem explodir igual a um tomate. O sangue chega a sujar a própria face do homicida.

O corpo do homem fica dependurado sobre o braço do sofá agora branco e carmim. No seu pescoço apenas um pedaço da cabeça e acima um trapo de carne representa o que um dia foi um crânio. Os olhos estão inundados por um grosso sangue que pinga freneticamente no tapete.

O rapaz levanta-se, segurando o rifle com os cano ainda fumegante, olha o próprio reflexo no vidro da janela e sai.

Já nos corredores do prédio ele tira um pedaço de papel do bolso. Ali escrito uma seqüência:

dono do cinema,

diretor,

roteirista,

produtor,

ator ...

Com um pouco de sangue ele risca o item dono do cinema.


----


Conto inspirado, baseado, vomitado após ver filme "Violência Gratuita (Funny Games US) - 2008.